Condições e Modos de Vida do Operariado Inglês da Primeira Revolução Industrial (1780-1840)

11set08

<!– @page { margin: 2cm } P.sdfootnote-western { margin-left: 0.5cm; text-indent: -0.5cm; margin-bottom: 0cm; font-size: 10pt } P.sdfootnote-cjk { margin-left: 0.5cm; text-indent: -0.5cm; margin-bottom: 0cm; font-size: 10pt } P.sdfootnote-ctl { margin-left: 0.5cm; text-indent: -0.5cm; margin-bottom: 0cm; font-size: 10pt } TD P { margin-bottom: 0cm } P { margin-bottom: 0.21cm } A.sdfootnoteanc { font-size: 57% } –>

Trabalho final apresentado à disciplina História Contemporânea I.

Prof. Osvaldo Luis Angel Coggiola

Sérgio Roberto Guedes Reis

Bacharelado em Relações Internacionais

Julho/2008.

Os trabalhadores, em geral, formam um grupo de homens inofensivos, modestos e bem informados, embora eu desconheça a maneira como se informam. São dóceis e afáveis, se não os molestarem muito, mas isso não surpreende, quando consideramos que eles são treinados para trabalhar desde o seis anos de idade, das seis da manhã até as oito ou nove da noite. Ponha um dos que advogam a obediência ao mestre numa avenida de acesso a uma fábrica, um pouco antes das cinco da manhã, para que se observe a aparência esquálida das crianças e de seus pais, arrancados tão cedo de suas camas, não importa o tempo que faça. Deixe-o examinar a miserável porção de comida, normalmente uma sopa aguada de aveia e bolo, também de aveia, um pouco de sal e, às vezes, completada com um pouco de leite, além de algumas batatas, um pouco de bacon ou gordura, para o jantar. Um mecânico londrino comeria isso? Permanecem fechados em salas onde o calor é maior do que nos dias mais quentes do último verão, até a noite (se atrasarem alguns minutos, um quarto da jornada é descontado), sem intervalos, exceto os quarenta e cinco minutos para o jantar: se comem alguma outra coisa durante o dia, têm de fazê-lo sem parar de trabalhar. O escravo negro das Índias Ocidentais, mesmo trabalhando sob um sol tórrido, tem provavelmente uma brisa suave que às vezes o refresca, um pedaço de terra e tempo para cultivá-lo. O escravo fiandeiro inglês não desfruta de céu aberto e das brisas. Enclausurado em fábricas de oito andares, ele não tem descanso até as máquinas pararem, e então retorna à sua casa, a fim de se recuperar para o dia seguinte. Não há espaço para gozar da companhia da família: todos eles também estão fatigados e exaustos. Esse não é um quadro exagerado: ele é literalmente verdadeiro. Pergunto mais uma vez se um mecânico se submeteria a isso, no sul da Inglaterra.”1

Introdução

Essa pesquisa tem por objetivo a investigação a situação daqueles que começaram a trabalhar nas fábricas inglesas na aurora da Revolução Industrial. A partir de fontes da época, como Engels, e historiadores e pensadores contemporâneos, como Hobsbawm, Thompson e Foucault, tentaremos identificar algumas mudanças fundamentais no modo e nas condições de vida daquele grupo social que se constituiria, num espaço de tempo bastante curto, o operariado inglês. Quando nos referimos ao modo de vida, estamos nos referindo aos costumes e práticas sociais comuns a esses indivíduos: aspectos comportamentais e culturais. Já as condições de vida se relacionam com a alimentação, a moradia, as condições de trabalho, a saúde, dentre outros elementos. Evidentemente, é impossível pensar estes dois entendimentos sobre a vida desses setores sociais de maneira separada. A separação, quando realizada, será feita com pretensões de didatismo.

Neste trabalho, buscaremos realizar a comparação das condições e modos de vida existentes antes e no próprio processo de configuração da Revolução Industrial, vista por Hobsbawm como não simplesmente um processo de adição e substituição de técnicas e costumes, mas sim uma mudança social fundamental, que destruiu, em suas fases iniciais, boa parte dos antigos estilos de vida existentes, fazendo com que os seus então portadores tivessem que buscar ou se submeter a outros, mas sem lhes indicar como fazê-lo.2 A delimitação da época histórica a ser estudada no período 1780-1840 não pretende ser rígida, e funciona muito mais como um esforço de identificação do momento em que as transformações a serem analisadas se deu com maior vigor, isto é, o espaço de tempo em que o operariado, ao final de seu processo, se constituiu, de fato, como proletariado.3 Nessas circunstâncias, não teremos a pretensão de acompanhar os desenvolvimentos estritamente políticos desse período, isto é, as lutas, e as tensões sociais. Nossa preocupação, com relação a estes aspectos, é apresentá-los mais como elementos representativos de práticas sociais e culturais, como maneiras de adaptação e confrontação à ordem existente. A escolha da Inglaterra, nesse sentido, se dá pela primordialidade deste país no desenvolvimento em si da Revolução Industrial e das transformações sociais que, dialeticamente, a conformaram e foram seu produto, e que, de certa maneira, foram encontradas em vários outros países que a empreenderam mais tarde. O foco na Inglaterra ao invés de toda a Grã-Bretanha se dá pela restrição espacial e temporal no desenvolvimento desta pesquisa e pelo propósito de uma abordagem mais ou menos homogênea das condições existentes neste país, ainda que tenhamos em conta as muitas especificidades sociais, culturais e institucionais existentes em cada uma das suas regiões.

I) O Momento Imediatamente prévio à Revolução Industrial

Nessa seção, tentaremos empreender uma abordagem introdutória às condições e modos de vida reinantes na Inglaterra no momento imediatamente prévio à aceleração definitiva das transformações que resultaram na denominada Revolução Industrial. Abordaremos aqui alguns costumes sociais reinantes na “cultura plebéia4, as transformações fundamentais que se desenvolveram no campo, as condições de vida as concepções sobre o trabalho aí existentes.

A Inglaterra de meados do século XVIII não era, como talvez se pudesse imaginar, um país eminentemente agrário. Na realidade, o campesinato já não se constituía mais exatamente como classe. Isso porque, nos cem anos anteriores, desenvolveu-se, em primeiro lugar, um intenso processo de concentração de terras nas mãos de um pequena classe de grandes latifundiários. A figura do proprietário de terras, que vivia basicamente da produção de sua gleba familiar, era bastante menos relevante aí do que em outros países europeus.5 Neste período, a aristocracia inglesa realizou um esforço sistemático de modernização da agricultura, objetivando ampliar os ganhos de renda de suas propriedades. As propriedades rurais passaram, para atender a esse propósito, a ser redimensionadas e reordenadas, principalmente por meio da intensificação dos cercamentos dos campos. Estes consistiam na unificação dos lotes dos camponeses em um só campo, que era utilizado para a criação intensiva do gado ou em plantações desenvolvidas para o mercado externo. Esta combinação entre a ampliação do tamanho das terras e das técnicas que permitiam o seu uso intensivo de fato permitiu grandes ganhos de produtividade no trabalho agrícola.6 Com isso, desenvolvia-se no campo uma estrutura social na qual somente alguns milhares de proprietários de terras passaram a arrendar suas terras, enquanto dezenas de outros milhares eram forçados a trabalhar num sistema de parceria, que por sua vez submetiam outras centenas de milhares a trabalharem como camponeses, servos ou colonos, que sobreviviam por meio da venda de seu tempo de trabalho, resultando na configuração de um complexo sistema monetário de receitas e vendas.7 A reação popular após cada anúncio nas paróquias de um novo cercamento era a de revolta; era comum que se tentasse evitar a fixação desses folhetos. Os camponeses ficavam com porções de terras tão diminutas que não se tornava inviável mesmo alimentar a vaca remanescente; sem quaisquer condições de sobrevivência e sem qualquer suporte de instituições públicas, eram forçados, na melhor das hipóteses, a vender seu animal e sua propriedade por preços irrisórios aos prósperos latifundiários, que estavam totalmente focados em ampliar a produtividade de suas fazendas. Karl Polanyi sustentou a posição de que os cercamentos foram a “revolução dos ricos contra os pobres”: os senhores e nobres literalmente roubavam os pobres de suas parcelas de terras comuns, demolindo as casas que estes consideravam, por força dos costumes, como suas, de seus antepassados e de seus herdeiros. Logo muitas aldeias seriam abandonadas, e as ruínas das moradias eram a comprovação da ferocidade da revolução.8

Já estava em desenvolvimento na Inglaterra, nesse período, um processo inicial de urbanização que praticamente inexistia em outros países. Já existiam grandes oficinas, e já estava em curso uma modesta divisão do trabalho. Ampliava-se o mercado consumidor e a produtividade do trabalho. Naquele momento, a Inglaterra aparecia socialmente aos seus eventuais visitantes como um país rico, fundamentalmente assentado no comércio. Era um país de lojistas, e seu cidadão mais típico era o comerciante.9 Essa incipiente população urbana era aumentada pelo aumento da produtividade do campo; a mecanização desse setor gerava, ao mesmo tempo, um enorme excedente de mão-de-obra para as cidades e fornecia a acumulação de capital necessária para a transformação das infra-estruturas, notadamente os portos, estrada, a ampliação das oficinas e a aprofundação das inovações técnicas.10

Enquanto no resto da Europa a fome era, no século XVIII, uma questão ainda bastante relevante, na Inglaterra ela se constituía como um problema excepcional, fruto muito mais de más colheitas e dos conseqüentes distúrbios sociais do que de incapacidade generalizada de produção alimentícia. No setor agrícola era comum encontrar trabalhadores que viviam com suas famílias em habitações de um único comodo, úmidas e abaixo no nível do solo.11 Nas cidades, a situação não era melhor, mas Thompson ressalta a existência de valores cívicos e belezas arquitetônicas, além de um equilíbrio razoável entre as profissões, o comércio e a manufatura, além de um certo sentido de diversidade que não foi mais encontrado na Inglaterra a partir do momento em que se desenvolveu a Revolução Industrial12. As taxas de natalidade eram elevadas, assim como as taxas de mortalidade, especialmente as infantis; as epidemias tinham grande impacto sobre a população13. Apesar disso, houve razoável crescimento vegetativo.

1.) Os Costumes Plebeus14

Apesar de todas essas transformações em curso, os modos de vida da plebe ainda não haviam sido fundamentalmente alterados, ainda que pouco a pouco passassem a ser submetidos a um regime de trabalho assalariado. Na verdade, até aquele momento a penetração do poder estatal na vida no campo era muito menor do que se poderia imaginar. Ainda era absolutamente predominante o direito consuetudinário oriundo de costumes estabelecidos séculos antes, e que eram, de fato, respeitados e colocado em primeiro plano pelas comunidades locais. Algumas práticas, como aquelas acertadas pelos mineiros de Dean, haviam sido acordadas possivelmente ainda no século XIII. Esses códigos de conduta, transmitidos em geral oralmente, regulavam diversos ofícios, e seu conhecimento era generalizado por parte dos aldeões, que os justificavam com exatidão. No caso de querelas entre os moradores, era o maior proprietário de terras da região, visto como superior aos demais, o árbitro convocado para resolvê-las e para aconselhar os demais habitantes.15 A perpetuação da tradição enquanto costume se dava, primordialmente, pelo ato de contar histórias, anedotas e narrativas exemplares.16

Muitos destes costumes podem ser descritos, alguns o serão brevemente neste espaço. Dentro da lógica de funcionamento das oficinas de trabalho, o aprendizado – a iniciação em habilitações por parte dos adultos –, não era visto como mero processo técnico, mas sim como transmissão cultural, de legado, entre as gerações. A criança começa a realizar as suas tarefas caseiras juntamente da mãe ou da avó, e posteriormente desenvolvia seu trabalho como empregado doméstico ou agrícola. As mães aprendiam a cuidar de seus filhos por meio do auxílio das matronas da comunidade. A transmissão de especificidades experienciais era reconhecida no processo de aprendizado dos ofícios não regulamentados; cada mestre ensinava uma determinada técnica peculiar, o que permitia identificar a origem quase imemorial do aprendizado de cada artesão17. Mas isso não significava que os costumes não se alterassem. Na realidade, as disputas por sua transformação estavam sempre em curso, mas os detalhes alterados só eram percebidos após várias gerações. Não se tratavam, então, de culturas inertes (ou, portanto, de “não-culturas”), mas sim de costumes que respeitavam a um registro temporal absolutamente distinto daquele que se configuraria posteriormente. De fato, o trabalho infantil estava bastante presente nesse período, e era entendida como algo normal pelos pais. Sua forma predominante era a doméstica, ou a desenvolvida no seio da economia familiar. As crianças menores, que acabavam de aprender a andar, eram incumbidas de apanhar e carregar coisas. Já desde o início do desenvolvimento das grandes manufaturas as crianças passaram a ser empregadas; especialmente no setor têxtil, quando enrolavam bobinas e colocavam as máquinas em funcionamento. No entanto, o trabalho não se prolongava ininterruptamente. Nas casas, as meninas se encarregavam de preparar o pão e a cerveja, além de realizarem serviços de limpeza. Na agricultura, colhiam os alimentos, por vezes sob condições climáticas bastante hostis. Todavia, apesar da dureza, as práticas executadas pelas crianças estava longe de ser comparável àquela que verificaremos na próxima seção, quando analisarmos as condições de trabalho na aurora da Revolução Industrial. Com efeito, havia um introdução gradual da criança no trabalho, respeitando, até certo ponto, a capacidade e a idade da criança: a descontinuidade de seu trabalho pode ser verificada no fato de que exerciam funções quase sempre distintas, como a entrega de mensagens, a colheita de frutas, a coleta de lenha. Intercalando estas atividades estavam jogos, danças e esportes. Suas atividades, afinal de contas, estavam sempre desempenhadas no limite da atuação familiar, sob o cuidado de pais e parentes.18

Indo mais adiante no trato da questão temporal: nesse momento, o trabalhador estava acostumado a trabalhar de acordo com as estações do ano, passando por vários meses de ociosidade.19 Os aprendizes passavam vários anos junto dos companheiros e do mestre, e esperavam por muito tempo até terem condições de exercerem de maneira qualificada os seus ofícios.20 Por um lado, a temporalidade do trabalho seguia um regime religioso, cristão: era comum que os funcionários de grandes manufaturas ritualmente oferecerem, antes do início da execução de suas funções, o seu trabalho a Deus e fizessem o sinal da cruz.21 Por outro, estava presente tanto um forte senso pagão como uma oposição a uma racionalidade do tempo: o ajustamento das condições de trabalho está posto com relação aos meios naturais, a noite, o dia, o frio, o calor, a chuva, a seca, o mar, etc. O trabalho se desenvolve de acordo com as necessidades, e o tempo se orienta de acordo com cada tarefa. A multiplicidade destas, juntamente com o capricho de outros seres humanos e animais, e mesmo a opção pelo desejo de se divertir ao invés de trabalhar22 tornavam o tempo qualitativo, e davam vazão para o imprevisto e o espontâneo. O ofício, realizado de maneira independente, era realizado de tal forma que cada instante fosse percebido de um jeito diferente. Isso porque alternava-se com grande freqüência a realização de trabalhos pesados com trabalhos leves e com a própria ociosidade.23 O tempo não era nesse contexto, então, linear, contínuo e homogêneo. Cada dia da semana era compreendido de uma maneira. Costumeiramente, as segundas-feiras (mondays, “dias da lua” entendidos miticamente como dias em oferenda à Lua e usualmente denominadas pelos trabalhadores como “Santa Segunda-Feira”) eram vistas como dias de não-trabalho, de celebração (não-alcoólica) do não-fazer. Era comum, então, que nas terças-feiras se acordasse mais tarde, e que, pelo “atraso” no desenvolvimento das atividades rotineiras, se ficasse trabalhando até mais tarde.

Havia em todo esse processo, para Thompson, uma demarcação menor entre trabalho e vida no fazer dos indivíduos.24 Eles não planejavam a carreira, nem a família; não encaravam a vida como uma coisa definida, não economizavam no sentido de poupança, não planejavam, não tiravam férias.25 As oportunidades são aproveitadas à medida que surgem, em geral sem preocupação com as conseqüências. A vida possui um ritmo que não pode ser prescrito pelo planejamento. A mortalidade, os preços e o desemprego são compreendidos como imponderabilidades, como coisas fora de controle. É comum, dentro dessa percepção – ao nosso ver – diferenciada de tempo, que pelo menos em uma vez na vida os jovens saiam de suas casas para experimentar o mundo.26 É óbvio, no entanto, que essa mobilidade está posta não no sentido de uma extensa circulação espacial (Hobsbawm mesmo considera o quanto o mundo era, num certo contexto, pequeno e grande para a maioria da população, já que existiam imensas zonas desabitadas e a distância entre elas era percorrida com extrema vagareza e dificuldade pelas pessoas27), mas sim de um aproveitamento qualitativo do espaço e do tempo que ali se pronunciavam.

A liberalidade presente em vários aspectos do funcionamento dos costumes plebeus estava associada a um forte esforço de conservação de sua forma. Thompson vê nesse conjunto de práticas uma resistência aos costumes que tentavam ser disseminados por outras classes (especialmente a gentry, a aristocracia e a burguesia ascendente), em especial por meio do Estado (onde, então, a educação formal tinha um papel essencial) e pela própria lógica de desenvolvimento econômico que, como vimos, começava a aparecer com mais intensidade na Inglaterra do século XVIII. A coesão interna gerada permitia uma grande capacidade de controle moral e social. Os desvios de conduta eram toleráveis até certa medida, mas a radicalização das transgressões era combatida pela comunidade por meio da força, do ridículo, da vergonha, da intimidação (que eram aplicados como ritos de desonra para descumpridores de várias tonalidades, como aqueles que não correspondiam às normas sexuais estabelecidas, o fura-greve, o inspetor de tributos, os juízes, etc). Suas normas, como vimos, não são aquelas da Igreja, ainda que boa parte dos habitantes fosse, naquele período, bastante religiosa28. As leis costumeiras não forçavam a confissão dos pecadores, não era necessária a peregrinação dos fiéis aos santuários. A força frágil do poder estatal não lhe permitia chegar até ‘o interior dos lares rurais, não dava formas às perspectivas de vida de cada um.29 Nesse período, a alfabetização em curso ainda é obrigada a se sujeitar à cultura oral ao invés de desafiá-la.

II) A Revolução Industrial

A partir de meados do século XVIII, intensificou-se consideravelmente a concentração de artesãos dentro das manufaturas. Os métodos de produção permaneceram razoavelmente similares, mas a centralização de funções num único espaço fez com que as inovações técnicas fossem pouco a pouco colocadas no seio do processo produtivo. O desenvolvimento dessa situação sofisticou a divisão do trabalho existente; houve enorme ampliação da produtividade, o que, no contexto britânico, implicou numa contumaz impulsão da exportação, principalmente de tecidos de algodão. Os lucros foram igualmente ampliados, graças ao barateamento da produção trazido pelo progresso técnico e pelo subseqüente definhamento das corporações de ofício, que monopolizavam o comércio interno e externo.30 A sistematização do processo produtivo, no devenir desse mecanismo, deu origem às fábricas, que precisavam de quantidades crescentes de mão-de-obra conforme esse gênero organizacional passou a se tornar hegemônico na Inglaterra. E, em boa medida, essa função de operários coube ou àqueles que moravam no campo – e que, devido à concentração fundiária em desenvolvimento e ao processo de mecanização existente no setor agrícola, (que, como vimos, lhes retiraram a propriedade sobre a terra e sobre os demais meios de produção), tornaram-se uma massa expulsa de seus locais de origem – ou àqueles que trabalhavam nas corporações de ofício e tiveram suas ferramentas expropriadas.

Diante do nosso propósito de identificar as transformações existentes nas condições e nos modos de vida desse nascente operariado, tomaremos o percurso de, primeiramente, discutir as mudanças mais fundamentais na condição de trabalho dessas pessoas, para que então identifiquemos quais as suas condições sócio-econômicas de sobrevivência e avancemos rumo a um comentário dos costumes que passaram a vigorar neste modo de vida societal enquanto identificamos os diferentes caminhos percorridos na adaptação e na contestação da ordem vigente por este grupo social. As divisões aqui realizadas não pretendem isolar os termos da discussão: encontraremos, ainda que de maneira diluída, questões referentes ao modo de vida relacionadas às condições de sobrevivência e vice-versa.

1.) As Condições de Trabalho

As fábricas se constituíam como verdadeiros colossos da construção. Edifícios enormes, com vários andares de altura e até centenas de metros de comprimento, grandes chaminés e imensos conglomerados humanos, combinando o cinza claro do concreto com o cinza escuro da fumaça extremamente tóxica. Dentro dela se gestavam novas formas de organização social, que atuariam firmemente na disciplinação dos novos grupos que lá atuavam. Essas organizações estavam totalmente voltadas para o aperfeiçoamento da produtividade e, desta forma, para o aumento dos lucros da classe burguesa. Era preciso, então, que a fábrica estivesse bem organizada, seguindo profundos processos de racionalização do trabalho. O processo de quadriculamento do espaço colocava cada operário em seu devido lugar, e em cada lugar era deveria estar por um operário. Os indivíduos devem ser colocados num espaço em que se possa localizá-los e isolá-los; ao mesmo tempo, era preciso, para potencializar a produção, que o operário estivesse articulado com as máquinas e demais meios de produção, e estas deveriam estar ordenadas de acordo com critérios como a diminuição do tempo a ser percorrido para a execução da mercadoria, a disposição coerente entre os mecanismos (colocados de acordo com as necessidades de especialização) e o melhor aproveitamento do espaço. Tais colocações, respeitando os princípios mencionados, facilitam a vigilância de todo o processo produtivo, incluindo-se aí a observação dos próprios operários. Estes eram comparados e classificados de acordo com sua habilidade e rapidez.31 Essa predominância do capitalista perante o operário se dava, ainda, num aspecto fundamental: os primeiros eram os únicos a acompanhar a totalidade do processo produtivo, desde a chegada das matérias-primas até a sua conversão em produtos acabados. A divisão especializada do trabalho e os mecanismos de vigilância reduziam a experiência de trabalho do funcionário à parcela infinitesimal da sua própria contribuição ao processo de produção, que se limitava a uma mesma pequena parte de um mesmo produto em uma mesma máquina por dezenas de horas.

Os conhecimentos possuídos pelo operário da primeira geração da Revolução Industrial eram inúteis para os empresários. O longo processo de aprendizado que constituía a vida do membro da corporação de ofício não era mais necessário diante do mecanismo de funcionamento das máquinas, um sistema que se configurava como um órgão objetivo e autônomo de produção.. Nenhuma aptidão física ou técnica que poderia ter sido desenvolvido durante o trabalho artesanal era relevante na indústria. Essa condição de nivelamento facilitava enormemente a contratação de mulheres e crianças.32

Contramestres e vigilantes eram os responsáveis pela vigilância dos operários: eles deveriam assegurar a regularidade das operações, de impedir que os operários ficassem distraídos e, em caso de comportamento considerado desviante, encarregavam-se de aplicar as multas, como as chicotadas e descontos no salário (no caso de se atrasarem para o serviço).33 Nas manufaturas, a vigilância era feita pelos inspetores “de fora”, e a preocupação estava totalmente posta com relação à qualidade daquilo que é produzido. Nas novas fábricas, no entanto, o controle não é mais pontual: ele se torna contínuo, ocorrendo ao longo de todo o processo do trabalho, mas levando em conta a própria atividade dos homens, seu conhecimento técnico, a maneira de fazê-lo, a rapidez, o zê-lo, o comportamento. A vigilância se torna parte do processo produtivo, isto é, uma maneira fundamental de extração e ampliação do lucro. Por meio daquela, o capitalista buscava evitar as fraudes, os roubos dos equipamentos, os desperdícios de tempo.34 É bastante curioso, nesse sentido, o relato exposto por Foucault. Ainda que se trate de uma tábua de regras de uma fábrica francesa, não nos parece equivocado admiti-la como uma condição também presente nas indústrias inglesas:

“É expressamente proibido durante o trabalho divertir os companheiros com gestos ou de outra maneira, fazer qualquer brincadeira, comer, dormir, contar histórias e comédias; [e mesmo durante a interrupção para a refeição], não será permitido contar histórias, aventuras ou outras conversações que distraiam os operários de seu trabalho; é expressamente proibido a qualquer operário, e sob qualquer pretexto que seja, introduzir vinho na fábrica e beber nas oficinas.”35

A disciplina do tempo adquire, assim, uma importância fundamental no condicionamento do operariado. Homens e mulheres começavam a trabalhar no momento em que o dia amanhecia, e só paravam à noite. Antes do uso da luz à gás, então, os trabalhadores permaneciam nas firmas pelo menos dez horas (no caso do inverno); em geral, no entanto, eles tendiam a ultrapassar quatorze horas diárias de serviço. Evidentemente, nesse contexto, o trabalhador chegava tão cansado em casa que não tinha condições sequer de comer algo; em poucas horas deveria retornar ao ofício que esgotara suas forças36. Não havia o descanso dominical, tampouco a “Santa Segunda-Feira”. A vida não é mais mensurada em estações, ou mesmo em semanas ou em dias, mas em minutos37 (e, posteriormente, em milésimos de segundo). A mecanização do trabalho é, então, a mecanização do corpo e dos gestos do trabalhador. Seu trabalho, dentro da lógica de funcionamento das fábricas, era específico e sempre repetitivo, seguindo o próprio mecanismo de funcionamento da fábrica.38

Os profissionais, então, perderam o controle sobre o próprio tempo. Os horários de entrada e saída das fábricas eram determinados pelo badalar dos sinos. O início do trabalho, por volta das quatro e meia da manhã, não tinha somente o propósito de deslocar a maior quantidade possível de tempo do operário para a produtividade da fábrica. Era, também, uma imposição moralizante, que valorizava o ato de acordar cedo para o trabalho e buscava impedir as eventuais celebrações e encontros festivos que pudessem ocorrer na noite anterior.39 Alguns patrões tentavam expropriar todo o conhecimento por parte dos operários acerca do tempo: só ele mesmo e os inspetores possuíam relógios; quando estes estavam dispostos para o olhar dos funcionários, costumeiramente eram adiantados pela manhã e atrasados à tarde. Houve um notável crescimento da compra de relógios por parte dos trabalhadores no início do século XIX (a partir do momento em que os modelos de bolso se tornaram economicamente viáveis), mas a maioria receava utilizá-los no ambiente de trabalho pelo risco de represá-la por parte de seus chefes. Dentro dessa lógica, mesmo os poucos minutos destinados para o almoço e jantar eram rigidamente controlados e alterados.40

As relações entre patrão e empregado eram, então, muito mais hostis do que aquelas encontradas entre mestre e aprendiz. Desaparecem as relações paternalistas encontradas nas corporações de ofício; as interações são, agora, pragmáticas, despersonalizadas. A distância entre chefes e empregados não é somente econômica, isto é, entre ricos e pobres; é física, dada a separação entre as casas de cada classe; era comunicacional, como enunciaria um clérigo: “Há menos comunicação pessoal entre o proprietário de fiação de algodão e seus trabalhadores, entre o estampador de algodão e os seus rapazes de mãos azuis, entre o mestre alfaiate e seus aprendizes, do que entre o Duque de Wellington e o mais ínfimo camponês de sua propriedade”.41 Na medida em que os superiores vêem os operários como instrumentos ou cifras, o salário dado a estes se desconecta de qualquer percepção moral: tudo é entregue ao jogo das forças de mercado.42 Importante ressaltar, no entanto, que toda essa rigidez existente e o crescente aumento da jornada de trabalho não foram suficientes para o aumento da produtividade das indústrias. A fadiga do trabalhador associada a uma péssima alimentação impediam esse avanço. Conseqüentemente, a estratégia adotada para o aumento do produto era o aumento das fábricas e do número de operários43, criando ambientes hiper-concentrados e extremamente mal-ventilados. Somente os aperfeiçoamentos técnicos (a Segunda Revolução Industrial, em meados da segunda metade do século XIX), a redução da jornada de trabalho e condições melhores de alimentação e sobrevivência permitiriam grandes incrementos de produtividade. Enquanto isso, a combinação entre uma jornada de trabalho extremamente longa e a falta de segurança e de cuidados anatômicos na construção das máquinas teriam graves conseqüências para a saúde dos trabalhadores, conforme especificaremos na próxima seção. O controle do patrão sobre o operário transcendia o espaço da fábrica: estes, em muitas ocasiões, eram obrigados a fazer as suas compras semanais de alimentos na loja de seus superiores; os pagamentos de seus salários, por vezes, em feitos com mercadorias miúdas; muitos funcionários eram obrigados a morar em casas alugadas por seus superiores.44

Como parte da acirrada disputa pelo aumento dos lucros, os novos empresários passaram, especialmente a partir da década de 1820 (um período de notória crise econômica resultante, em parte, da superprodução que se sucedeu ao término das guerras napoleônicas), a ampliar enormemente a contratação de mulheres e crianças para trabalharem em suas indústrias. Ambos os segmentos, que trabalhavam no mínimo a mesma quantidade de horas que os homens, chegaram a representar numericamente cerca de três quartos do total de operários ingleses na indústria de algodão durante o período 1834-47.45 A Factory Act, de 1833, formalizou o emprego de crianças com mais de nove anos nas fábricas e fixou o limite de trabalho em 48 horas semanais46, mas nem essa institucionalização significou uma novidade (no sentido de incluir um novo grupo social no mercado de trabalho), nem foi, em geral, cumprida (já que as crianças continuaram a trabalhar por mais de dez horas diariamente, pelo menos até praticamente o fim do século XIX na Inglaterra).

Na verdade, o emprego das crianças em trabalhos árduos data da própria aurora da revolução industrial. Dentro da lógica da especialização da mão-de-obra, elas eram colocadas para trabalhar em minas menores e ineficientes, onde as galerias eram tão estreitas que apenas os pequenos poderiam atravessá-las mais facilmente, inclusive conduzindo mini-vagões; também atuavam em diversos campos carboníferos maiores, onde eram colocadas ou como ajudantes de cozinheiro ou como operadoras das portinholas de ventilação47. Nas fábricas têxteis, ficavam responsáveis por tarefas como o desembaraçamento de lã e o encaixe, por horas a fio, das cardas das máquinas no arame; tamém poderiam ficar atrás dos teares ligando os fios que se partiam. Nas regiões rurais, onde havia intensa mecanização, era comum que trabalhassem à noite, mantendo jornadas de até dezesseis horas diárias.48

A situação das mulheres era igualmente penosa. Parte delas ia trabalhar para a classe média em serviços domésticos; conforme afirma Hobsbawm, “a maneira mais segura de uma pessoa pôr-se claramente acima dos trabalhadores estava em ela mesma empregar mão-de-obra”.49 Em outras palavras, era um mecanismo para a própria afirmação da superioridade das mulheres da classe média perante as demais. O trabalho das mulheres nas fábricas era tão longo e degradante como o dos homens: poderiam trabalhar em setores menos cansativos, como a fiação ou a tecelagem, mas era normal vê-las nas indústrias de vidro, nas minas, ou mesmo nas próprias indústrias têxteis operando grandes máquinas.50 Contudo, o agravante estava no fato de que eram forçadas por sua situação social a trabalharem até a última semana de gravidez, e era comum que retornassem à rotina extenuante do ofício somente três ou menos semanas após serem mães.51

A contratação de mulheres e crianças era bastante vantajosa para os empresários. Primeiro, porque tendiam a resistir muito menos do que os homens aos drásticos processos de disciplinação explicitados no início desta seção. Em segundo lugar, num contexto de grave crise econômica, como a Inglaterra do final da década de 1830, o uso desses segmentos sociais nas fábricas fazia muito mais sentido, já que ganhavam muito menos do que os homens, apesar de terem uma produtividade relativamente menor.52 Por trabalho equivalente, em média, as mulheres recebiam um salário igual ao da metade dos homens, enquanto que as crianças ganhavam metade do auferido pelas mulheres.53 Ainda que tão inferior ao dos adultos, o ordenado infantil era essencial para a sobrevivência da família, dadas as extremamente restritas condições de vida das famílias, que acompanharemos com mais detalhes a seguir. Em terceiro lugar (e em conexão com o argumento econômico), a nivelação da (não-) experiência entre os homens e mulheres que chegavam às cidades para o trabalho fabril fazia com que aquelas, a partir de um certo ponto, não só ocupassem cargos complementares aos dos homens, mas passassem a substituí-los.

O contextos de crise econômica e de inovações técnicas, que substituíam máquinas antigas por novas, tornavam a carreira dos trabalhadores algo bastante instável54. Tanto os membros das carreiras decadentes, ainda não totalmente adaptadas ao maquinismo (como a tecelagem manual, os tricotadores, as costureiras e determinados setores agrícolas) como mesmo aqueles que trabalhavam nas indústrias e viam o surgimento de máquinas mais suficientes, que precisavam de menos operadores para funcionar tenderam a compor, no decorrer da primeira metade do século XIX, um imenso exército de reserva, que resultaria no desenvolvimento de condições de vida absolutamente degradantes.

2.) Condições de Vida

A Inglaterra passou por transformações demográficas de grandeza única em sua história a partir do final da segunda metade do século XVIII, e se intensificaram conforme a mecanização do campo se ampliava e as fábricas se consolidavam como pólos de produção. Em 1750, só existiam duas cidades na Grã-Bretanha com mais de 50 mil habitantes (Londres e Edinburgo). Em 1801, esse número chegava a oito e, cinqüenta anos depois, já haviam 29 (nove delas com mais de cem mil habitantes).55 Londres, em 1800, tinha um milhão de habitantes (já tendo passado por um expressivo crescimento durante as cinco décadas anteriores). Em sessenta anos, saltaria para 2,8 milhões. Em 1780, a população total inglesa era de 8,5 milhões de habitantes; o número chegaria a 9 milhões em 1801, 16 milhões em 1841 e, quarenta anos depois, 36 milhões56. Por volta de 1850, o país se tornaria um dos primeiros do mundo moderno a possuir uma população urbana numericamente superior à rural.57

Para Thompson, o incremento da população nesse período se sustentou principalmente por uma longa série de boas colheitas e numa melhora do padrão de vida desenvolvido nos primeiros momentos da Revolução Industrial; com o avanço da industrialização na primeira metade do século, no entanto, a saúde da população urbana começou a deteriorar, principalmente devido à imensa concentração populacional nas cidades que, como veremos, sofreria com as epidemias, as péssimas condições de habitação, as deformações e a estafa causadas pelo trabalho e a alimentação insuficiente e inadequada. A medicina, nesse momento, parece ter sido pouco capaz de contornar esses problemas.58

A Revolução Industrial certamente implicou uma efetiva transformação econômica no período 1780-1840. A ampliação da riqueza produzida, graças ao enorme aumento de produtividade trazido pela mecanização do campo e pela introdução de complexas máquinas nas nascentes indústrias. A produção de algodão durante o período 1770-1800, por exemplo, cresceu doze vezes. O número de teares mecânicos cresceu mais de cem vezes em menos de quarenta anos (1813-50).59 A enorme quantidade de capital gerado permitia ao governo expandir suas estruturas burocráticas e iniciar, ainda de maneira tímida, o desenvolvimento da infra-estrutura urbana e de mecanismos para um melhor escoamento do comércio, como portos maiores, navios e estradas. Essas condições resultaram, assim, numa imensa prosperidade material para os aristocratas agrários e para a crescente burguesia que, na década de 1850, possuía capital excedente o bastante para investir em estradas de ferro e gastar em desimpedidamente em apetrechos domésticos lançados em exposições universais60 ou em mobílias extravagantes que imitavam o modo de vida aristocrático, cuja classe já não era mais economicamente hegemônica. Para o operariado, inteiramente gestado no seio desse processo, a realidade foi consideravelmente distinta. É bem provável que, nos primeiro meio século de decurso desse processo revolucionário, a participação desse setor tenha decrescido em relação ao das outras classes – isso será brevemente discutido no final desta seção. O trabalhador médio, como veremos, manteve-se num nível bastante próximo ao da mera subsistência. Pretenderemos explicitar aqui, então, alguns dos componentes das condições de vida do operariado, como habitação, saúde, alimentação e demografia.

A questão demográfica está intimamente ligada à imigração. Para além do imenso deslocamento do campo para as cidades61 (e a própria destituição do mundo rural por meio do súbito desenvolvimento de zonas urbanas nessas regiões até então pouco habitadas) ocorrido dentro do território inglês, foi fundamental para o desenrolar da industrialização a chegada massiva de irlandeses às cidades do centro e do sul da ilha britânica à procura de melhores condições de vida. Por ano, chegavam cerca de 50 mil trabalhadores irlandeses à Inglaterra; a maioria compunha o crescente exército industrial de reserva que passou a ser formar nas grandes cidades. Muitos, no entanto, ocupavam a base da pirâmide social do operariado inglês: trabalham como peões, sem lugar fixo: constroem ferrovias, atuam nas docas dos portos, são ajudantes de pedreiros na construção civil. Executam tarefas, então, que a maioria dos trabalhadores ingleses não está disposta a realizar; ganham os piores salários (a título de exemplo, os operários especializados das fábricas ganham até seis vezes mais, e os salários destes já são considerados como de mera subsistência).62 O crescimento da imigração dos irlandeses resultaria na formação de aglomerados sociais deslocados dos demais; num contexto de crise econômica e desemprego, muitos trabalhadores ingleses não viam a chegada desses grupos com bons olhos, pois acirravam-se as competições por empregos e, com isso, a faixa mínima de salários tendia a ser reduzida.

As taxas de natalidade e mortalidade alteraram-se dramaticamente no decorrer da primeira revolução industrial. O número de filhos por casal aumentou consideravelmente: a taxa alcançou a proporção de 35 por mil, mantendo-se desta forma até quase o final do século. O percentual de mortos, no entanto, continuou tão alto quanto antes (cerca de 21 por mil),63 especialmente nas grandes cidades (28 por mil em Manchester). No princípio do século XIX era claramente perceptível o fato de que as maiores famílias eram exatamente aquelas compostas pelos trabalhadores mais pobres (incluindo-se aí as comunidades irlandesas). Para Thompson, esse é um importante argumento para a comprovação de que o aumento da taxa de natalidade em todo o período 1780-1840 não é uma comprovação da melhoria das condições de vida da população.64

Talvez a faixa etária onde o problema da mortalidade era mais pronunciado era justamente a infantil (zero a cinco anos). De acordo com o Relatório Oficial Geral de Registros, de 1839, a taxa de mortalidade entre as crianças de até um ano em Sheffield era de 250 em 1000; entre crianças de até cinco anos, essa proporção subia para 506 em 1000. Em Manchester, o número era ainda mais alto: 517 em 1000. Pode-se dizer, então, que mais da metade das crianças nascidas nessas grandes zonas urbanas morria ainda antes de começar a falar; nas zonas rurais, apesar de os salários serem ainda menores, o índice de sobrevivência era superior, também em parte devido à permanência da concessão de impostos para os pobres nesses regiões. Contudo, quando chegavam à idade adulta, boa parte dessas pessoas necessariamente ia se estabelecer nas cidades.65

As possibilidades de sobrevivência para as classes baixas, então, eram bastante baixas. As chances de se manter vivo estando nas cidades eram pequenas, seja o indivíduo uma criança ou um adulto. As estatísticas da década de 184066 impressionam:

Cidades/Grupo Social

Pequena Nobreza Rural

Artífices/Comerciantes

Trabalhadores

Rutlandshire

52

41

38

Truro

40

33

28

York

48

31

24

Derby

49

38

21

Leeds

44

27

19

Manchester

38

20

17

Bethnal Green

45

26

16

Liverpool

35

22

15

A duração média da vida na Inglaterra era, no período (1840s), de 41 anos. Ao observarmos os dados da tabela acima, parece evidente o quanto as diferenças na expectativa de vida entre as classes sociais tornam pouco representativo das condições de vida vigentes o valor encontrado no país como um todo.

Um dos motivos mais relevantes para esse índice tão baixo no setor operário está nas condições em que trabalham. A partir do momento em que reunimos saúde e trabalho, podemos dar um passo adiante na compreensão das condições de trabalho e de vida desse grupo. O elemento central que integra as duas esferas é a deformação. Esse fator atinge igualmente crianças e adultos. O funcionamento das máquinas exigia que se mantivesse uma atenção constante por horas a fio; era comum, principalmente entre as crianças, que o excesso de fadiga levasse as crianças a adormecer no trabalho. Seus pais, no entanto, costumavam dar-lhes palmadas para que se mantivessem acordadas; os contramestres passavam, de tempos em tempos, com correias, intimidando-as.67 Os equipamentos não possuíam proteção adequada, e por vezes eram pesados ou grandes demais para serem operados pelas crianças – que, em geral, não contavam com o auxílio dos adultos para realizar tais operações.68 Qualquer equívoco, ou qualquer erro no funcionamento das máquinas poderia implicar em graves conseqüências para a integridade física das pessoas. As lesões mais graves, no entanto, vinham devido ao esforço repetitivo. As crianças, em pouco tempo, passavam a coxear após se dedicarem intensamente a acionar os pedais dos teares.69

Nos adultos, as deformações apareciam de diversas maneiras. Um operário típico teria diversos problemas em suas articulações: suas pernas poderiam ser tortas, os tornozelos inchados, um ombro mais baixo do que o outro (ou projetados para frente), peito-de-pombo, etc. Os profissionais especializados de muitas áreas (fiandeiros de algodão, mineiros, cuteleiros, recolhedores de sobras de tecido, amoladores, cardadores, vidreiros, padeiros, entre outros) comprovadamente apresentavam doenças ocupacionais graves70. No caso das mulheres, as deformações causadas pelo serviço estafante e repetitivo – para além de muitos dos problemas descritos para os operários homens – contribuíam até mesmo para o aumento da mortalidade infantil (e não somente para os índices relativos aos adultos), na medida em que elas trabalhavam nas indústrias desde muito pequenas e era comum que sua ossatura pélvica não se desenvolvesse plenamente; ao tornar-se estreita, fazia com que os partos fossem realizados com bastante complicações71. Para os trabalhadores, essa nova política implementada sobre seus corpos não só simbolizava a sua perda de controle sobre os mesmos: ela inviabilizava a sua potência em si. Aqueles que conseguiam sobreviver às enfermidades em alguns anos já estavam totalmente inaptos para exercer os seus ofícios. Na realidade, a predação dos corpos era tamanha que qualquer atividade ficava inviabilizada. O estado atrofiado de seu corpo jamais poderia ser comparado sequer ao vigor do camponês típico; o operário médio não estava mais habilitado nem para os serviços pesados, destinados aos irlandeses pobres. Na melhor das hipóteses, poderia aspirar a ser contratado para entregar mensagens ou para circular pelos mercados, como um ambulante, na tentativa de comercializar alfinetes, agulhas, fitas, laços, frutas e bolos.72 Os operários se encontravam, assim, numa situação de permanente insegurança: não sabiam até onde poderiam resistir física e mentalmente à estafa do trabalho, e estavam sempre pressionados por índices de produtividade que, caso não cumpridos, resultariam na sua demissão e, na impossibilidade de readmissão num novo emprego, no ingresso à condição de indigente social; as crises econômicas afetavam diretamente a sua vida: em caso de estagnação e redução dos lucros, bastava ao capitalista rearranjar a estrutura de sua empresa; o procedimento básico era a demissão em massa. Em um dos momentos em que o quadro se agravou (a crise de 1841-42), dois terços dos trabalhadores têxteis de cidades industriais como Bolton perderam seus empregos73.

Outra faceta fundamental das dificuldades encontradas pelo operariado no início do século XIX era o risco de epidemias. As doenças, como quando ainda descrevíamos as concepções de mundo plebéias, eram fenômenos absolutamente comuns, fatalidades aceitas e admitidas como parte da constituição da própria vida de cada um. A problemática das enfermidades, no entanto, se torna central num contexto de extrema pauperização, péssima alimentação, hiper-concentração populacional e total ausência de infra-estruturas públicas nos bairros operários. O Primeiro Relatório do Oficial Geral de Registros indicou que cerca de 20 por cento da taxa global de mortalidade se devia à tuberculose, que se disseminava tanto nas zonas urbanas como nas rurais.74 Outras doenças, epidêmicas e não-epidêmicas, diagnosticadas como inflamação dos pulmões, convulsões, escarlatina, sarampo, varíola, coqueluche, leptospirose e tifo também eram extremamente comuns75. Em cidades próximas a rios, como Leeds, as enchentes – que traziam para o interior das casas vários dos focos de doenças mencionadas e detritos industriais extremamente tóxicos – eram responsáveis pela impressionante estatística na qual a taxa de mortalidade superava em até uma vez e meia a taxa de natalidade nos anos em que ocorriam com mais freqüência.76

Diante desse cenário, não é difícil de se supor quais eram as condições de habitação dos setores mais pobres das zonas industriais. Engels77 realiza um relato impressionantemente detalhado de cada região da Inglaterra. Apesar das especificidades de cada cidade, é possível encontrar diversos aspectos em comum. Em geral, os operários moravam em cortiços de um ou dois andares dispostos em fila, e quase sempre construídos irregularmente. As casas mais sofisticadas, as cottages, pertenciam aos setores superiores do operariado, e possuíam até quatro cômodos e cozinha. No entanto, os locais, geralmente, eram extremamente sujos, com ruas não pavimentadas, sem esgotos ou calçadas, repletos de detritos humanos e animais e poças lamacentas, que às vezes chegam a cobrir até os joelhos. As habitações quase sempre não possuíam ventilação, e a falta de espaços livres fazia com que a secagem das roupas fosse feita no meio das próprias ruas. O mal cheiro era praticamente insuportável; os muros dos bairros estavam destruídos, os vidros, inexistentes, as portas das casas eram feitas com pedaços de plantas. As casas não possuíam móveis: as mesas e cadeiras, quando existiam, eram feitas com caixas; aquelas se constituem, assim como as fábricas, como domicílios escuros, úmidos e apertados (algumas delas chegam a ser subterrâneas, em condições muito piores do que as similares encontradas no campo). O relato extremo de um bairro de Bethnal Green78 parece irrealizável: num terreno de cerca de 400 jardas quadradas (algo como 360 metros quadrados) vivem cerca de doze mil pessoas (1400 casas de um cômodo, 2795 famílias). Cada habitação possuía uma área de três a quatro metros quadrados; cada uma continha até nove ou dez pessoas (marido, esposa, avô, avó e mais quatro ou cinco filhos).

Os pais de família costumavam possuir somente a roupa do próprio corpo – que era exatamente o uniforme de trabalho, em geral em péssimas condições. Dormiam em pequenos amontoados de palha; muitos não tinham condições de possuir sapatos, então costumavam andar descalços79. A condição de extrema pobreza fazia com que, para se manterem, penhoravam semanalmente seus cobertores, caso os tivessem.80 Os mais pobres, na verdade, acabavam por utilizar trapos e farrapos de estopa como vestimenta. A lógica penitenciária associada a um ethos empresarial de racionalidade econômica resultava no impedimento de convivência entre os casais no ambiente de trabalho81 – já que, como vimos, não era facultado ao trabalhador a possibilidade de distrair-se; ele deveria estar sempre totalmente focado em seu ofício. Os recém-nascidos, que eram levados até as fábricas, eram deixados com outras crianças, com parentes ou de senhoras idosas. Para controlar o choro, muitas eram submetidas ao uso de narcóticos; as chupetas, sujas, eram feitas de trapos (atados a pedaços de pão embebidos em leite e água)82.

A alimentação dos trabalhadores era igualmente precária. Dentro do tenso debate acadêmico a respeito das condições de vida do operariado na primeira metade do século XIX, Hobsbawm defende que os salários dos trabalhadores começaram a cair a partir de 1815, e que o não desenvolvimento de instituições adequadas ao enorme aumento e concentração populacionais levou a um decréscimo na produção e no transporte dos alimentos.83 Nesse sentido, a própria transição do campo para a cidade já significou uma piora substantiva das condições de alimentação desses migrantes que passavam a trabalhar nas indústrias.84 É evidente, então, que a alimentação crescentemente inadequada levava à constituição de individualidades frágeis, incapazes de desenvolver suas atividades com vigor e, principalmente, sujeitas a toda sorte de doenças que infestavam o cenário dos grandes conglomerados urbanos ingleses.

Mais especificamente, pode-se dizer que houve um substantivo decréscimo no uso do trigo por parte da população, tanto aquela que permanecia no campo como a que se via forçada a migrar para as cidades. Esses setores sociais, que viam, no final do século XVIII, a substituição de suas dietas habituais de cereais inferiores para o trigo (e, portanto, para o consumo do pão branco) como um símbolo de ascensão social, acabaram sendo compelidas por latifundiários, fazendeiros, párocos, manufatureiros e o próprio governo a trocarem-no pela batata85. O uso da batata era especialmente interessante pois alimentava populações muito maiores por hectare do que o trigo;86 sua grande produtividade significava a multiplicação dos ganhos em escala dos fazendeiros. No entanto, o consumo das batatas simbolizava um status de degradação social; não só implicavam numa dieta mais pobre do que a de trigo (por ser menos variada e conter menos nutrientes), mas indicava o avanço da pobreza, já que eram mais baratas do que os cereais; por um momento, embora houvesse resistência por parte dos trabalhadores ingleses em consumi-la (já que isso era visto como um rebaixamento para os padrões culturais irlandeses), por um momento criou-se uma ilusão de prosperidade: era possível comprar mais batatas do que trigo. Com o tempo, porém, a crescente dificuldade financeira das classes inferiores inviabilizava mesmo a compra dessas leguminosas. Thompson também afirma que houve uma substancial queda do consumo da carne entre as classes mais baixas na primeira metade do século XIX; na velha Inglaterra, “o Roast Beef era o orgulho dos artesãos e a aspiração do trabalhador”. Também houve significativa queda no consumo de cerveja entre as décadas de 1800 e 1830, enquanto se introduzia crescentemente o uso de chá e açúcar entre as classes trabalhadoras. Essa transição também continha elementos fortemente culturais: a preparação de cerveja era vista como uma arte, que se bem executada por uma mulher, certamente a transformaria numa boa esposa; beber cerveja fazia parte até de alguns rituais metodistas. Muitos trabalhadores, como aqueles que atuavam no campo, os carregadores de carvão e os mineiros consideravam a cerveja um componente essencial para desempenhar suas tarefas pesadas, na medida em que repunham o suor. Contudo, o aumento do imposto sobre a cerveja a partir de 1815 (a Lei dos Cereais), embora tenha deixado insatisfeita a maioria da população, acabou por vigorar; o chá, um estimulante vigoroso e não-alcoólico, passou a ser empregado nas fábricas. Logo o chá passaria a ser visto como um energético fundamental para a prática dos ofícios, substituindo a cerveja, que entorpecia e distraía o trabalhador. Mas, como veremos, isso não significou o fim do alcoolismo, muito pelo contrário.

Em geral, os trabalhadores só recebiam seus ordenados semanais nos sábados à tarde. As classes médias, então, para além da vantagem financeira de poderem comprar alimentos totalmente inacessíveis ao operariado, ainda podiam selecionar os produtos de primeira necessidade mais frescos, disponíveis ainda pela manhã. Os proletários, especialmente os mais pobres, só podiam ir às feiras à noite, após o trabalho. Tudo o que encontravam nos finais de feira eram comidas de pior qualidade: legumes murchos, queijos velhos e medíocres, manteiga rançosa e, principalmente, carne estragada, proveniente com freqüência de animais doentes. Noventa por cento dos produtos que eram comprados no sábado à noite já não são mais comestíveis no domingo pela manhã, anota Engels.87 Mas este não era o único problema: a maioria dos produtos comercializados nas feiras que podem ser comprados pelos mais pobres eram “falsificados”. O café era moído com chicória para ganhar volume, o arroz e os sabonetes eram misturados com o açúcar, o cacau com a terra, assim como o tabaco. O mesmo ocorre com produtos de outros setores; há fraudes com relação aos tamanhos e composição das roupas, as pesagens de diversas mercadorias são adulteradas.88

Nas famílias operárias onde todos trabalhavam era possível consumir carne todos os dias, e bacon e queijo à noite; o grupo intermediário dentro do operariado só conseguia consumir carne (estragada) aos domingos – no resto dos dias, se comia sopas e pão. Os mais pobres não se alimentavam de carne em nenhum dia da semana; restringiam-se aos pães, queijos de péssima qualidade e farinha; os irlandeses, representantes do último estágio de degradação social nesse contexto, consumiam, na melhor das hipóteses, sopas. Era comum, no entanto, que os produtos alimentícios acabassem ainda antes do final da semana; nesse caso, restava aos trabalhadores improvisar suas refeições com chás diluídos, cascas de batatas e vegetais cozidos89. A rotinização dessa condição geralmente resultava em desnutrição aguda; mesmo quando não morriam de fome, estes indivíduos acabavam sendo mortalmente acometidos pelas doenças, epidemias e deformações do trabalho.

Essa desesperadora condição das classes trabalhadoras no contexto da primeira revolução industrial foi longamente debatida por historiadores e pensadores em geral, especialmente pelo fato de que os dados sobre a época não são unânimes e totalmente confiáveis. Cremos ser interessante, a esta altura, apresentar brevemente esta discussão, já que nossa leitura do período seguiu principalmente as considerações de Hobsbawm, Thompson e Engels. Hobsbawm90 classifica as escolas clássica (Ricardo, Malthus, Marx, Toynbee, Hammond) e moderna (Clapham, Ashton, Hayek) respectivamente como “pessimista” e “otimista”, isto é, a primeira – grosso modo – defende a tese de que as condições de vida das classes mais pobres, que sofreram os efeitos mais imediatos da industrialização, pioraram durante a primeira metade do século XIX; a segunda tenta fundamentar o contrário. O historiador inglês busca desconstruir os argumentos utilizados pela segunda escola, especialmente aquele no qual é realizada uma divisão de renda no interior da classe trabalhadora e se admite que uma proporção superior à metade de todo o grupo teve os seus salários aumentados durante o período. Hobsbawm considera que o estudo das condições de vida dos operários não pode ser observado unicamente do ponto de vista dos ordenados (como aponta Clapham); é preciso avançar rumo a questões como mortalidade infantil, habitação, vestuário, alimentação e desemprego. Por meio de seus estudos estatísticos, o autor compreende, então, que não existe nenhuma base sustentável para a perspectiva otimista no período 1790 até meados da década de 1840. Na verdade, acaba por defender uma perspectiva pessimista, na medida em que aponta para uma provável melhoria das condições de vida da população durante o século XVIII e, de fato, um declínio alarmante das mesmas, em especial durante das crises da década de 1840. Thompson91 possui argumento similar, indicando como os dados utilizados pelos otimistas não faziam distinções claras entre as classes sociais do período; tal ausência de diferenciação é percebida em análises com as de Ashton, que vê no aumento de importações de commodities (como café, chá e açúcar) um símbolo de aquecimento econômico do período, mas não faz a indicação a destinação social desses bens. Thompson considera, pelo contrário, que o padrão de vida da maioria dos trabalhadores permanecia apenas no nível de subsistência. Na verdade, considera até possível que determinados aspectos podem ter se transformado positivamente (como habitação e vestuário) no final da primeira metade do século, mas a intensificação da exploração, da insegurança e da miséria inviabilizam a interpretação otimista. A questão é que do ponto de vista psicológico, a situação do trabalhador no período piorou sobremaneira: continuava a sobreviver somente para o dia seguinte enquanto via seus chefes enriquecerem rapidamente. A participação daquele nos benefícios do progresso econômico, afirma Thompson, acabou por se restringir materialmente num maior número de batatas, em algumas roupas de algodão para sua família, sabão e velas, um pouco de chá e açúcar92. Ainda assim, é essencial lembrarmo-nos de que as batatas tornavam as dietas pobres, o sabão e as velas eram vendidos como produtos totalmente adulterados e o chá simbolizava a introdução de um costume totalmente exógeno na tradição desses trabalhadores que tinha a propriedade de mantê-los acordados após dezesseis horas de trabalho.

  1. Práticas Sociais na Transição para um Mundo Industrial

As transformações na dieta alimentar que descrevemos no final da seção anterior não expressam somente uma alteração quantitativa do que é ingerido. Elas revelam mudanças culturais, são outros indícios da erosão de um determinado modo de vida e a sua substituição por outro – que não parece ter se constituído por obra dos idílios e da criatividade dos grupos afetados, mas sim diante do sobrepujamento do reino da necessidade por sobre o da liberdade. Mas a alimentação não é nem de longe o elemento principal dessa transição. Já observamos algumas alterações fundamentais que se desenvolveram no domínio do trabalho. Nesta seção buscaremos compreender uma visão mais global do processo, de forma a percebermos os distintos mecanismos de incorporação ou de rejeição dos trabalhadores à nova ordem e a relação desta com os mesmos: a interação daqueles com o governo; a economia moral da plebe em confronto com a racionalidade econômica capitalista; o alcoolismo e outras práticas de alienação social; a religião (especialmente o metodismo), a formação de grupos de ajuda mútua entre os operários e o nascimento dos sindicatos.

Conforme vimos ainda no início desta pesquisa, as comunidades locais das pequenas aldeias da velha Inglaterra tendiam, em sua maioria, a rejeitar a intromissão do poder estatal sobre seus costumes; essa resistência permitia a solidificação de suas tradições, em especial por meio da elaboração de um direito consuetudinário que remetia aos antepassados e era conhecido por todos. O governo possuía, então, pouco poder de intervenção sobre a vida dos habitantes do campo. Nas grandes cidades que começavam a se formar a partir de fins do século XVIII, no entanto, a atuação do Estado torna-se muito mais efetiva, ainda que boa parte do pensamento dominante defendesse um poder público com tamanho reduzido. De fato, a relação do governo com as classes inferiores é bastante ambígua. Por um lado, cresce substantivamente o número de codificações sobre o trabalho e sobre o comportamento das multidões; por outro, inexiste um equipamento público capaz de dar conta da grandeza e da complexidade das estruturas sociais que rapidamente se desenvolvem nos meios urbanos.

A estética poluída e bastante desordenada presente na configuração das cidades pode ser atribuída ao funcionamento ainda precário do Estado. Para as camadas mais pobres, faltavam os serviços públicos mais essenciais: abastecimento de água, esgotos sanitários, espaços abertos, condições mínimas de habitação, tamanhos das ruas, hospitais, etc93; antes, nas vilas, a população podia contar com um poço de água (ainda que em geral impura) próxima aos cemitérios e sempre disponível. Nas cidades, tinham de se levantar à noite para entrar na fila que se formava diante da única bica que servia a várias ruas e que só era acessível por meio de pagamento. Além disso, tinham de suportar o cheiro do lixo industrial e dos esgotos; a falta dos espaços mencionados fazia com que as crianças brincassem entre detritos e montes de esterco. Os poucos investimentos realizados ainda no início do processo de rápida industrialização em saneamento e abastecimento de água logo ou se tornavam arcaicos e insuficientes, ou simplesmente se deterioravam diante da total ausência de investimento público, o que levava constantemente à aparição de intermediários aproveitadores que ofereciam alguns desses serviços com péssima qualidade.94 O fato é que os investimentos em infra-estrutura foram em sua imensa maioria nos bairros mais ricos da cidade. O contraste na condição observada entre os bairros era tão grande que resultou num gradativo esforço da burguesia em se afastar fisicamente dos conglomerados operários. As epidemias só eram controladas a partir do momento em que passavam a atingir membros das classes médias.95 Com efeito, considerava-se que os médicos e funcionários paroquiais que atuavam junto aos mais pobres corriam um alto risco de morte. É diante dessa total ausência de estruturas públicas de higiente que Thompson afirma sobre a total inoperância na atuação da medicina naquele momento, ainda que esta se desenvolvesse naquele momento.96 Quanto mais rápido se desenvolvia uma cidade industrial, maior era a sensação de ausência de estruturas fundamentais de bem-estar nas vidas das crescentes massas urbanas. Essa incompetência no acompanhamento das transformações sociais das cidades inglesas não era, no entanto, exclusividade do poder público; seja pela preferência às exportações, seja pela própria incapacidade de produção nos níveis adequados, o setor privado freqüentemente não conseguia suprir as populações com alimentos em quantidade suficiente97.

Contudo, enquanto não se legislava – ou, muito menos, se executava – nenhuma regulamentação sobre moradias adequadas ou sistemas de saneamento básico, a presença das instituições sobre o cidadão pobre começava a se tornar mais clara. O Speenhamland System (ou Lei dos Pobres) funcionava nas cidades e nos setores rurais mais acessíveis desde pelo menos 1601 (sofrendo uma primeira reformulação em 1795). Era uma parceria entre o poder público e a Igreja que auxiliava os mais pobres, complementando a sua renda até um nível mínimo de subsistência98. No contexto da Revolução Industrial, essa legislação teria um papel fundamental. Num primeiro momento, ela funcionaria como garantia da rentabilidade do trabalhador para o capitalista, na medida em que necessariamente o pagamento de salários irrisórios seria compensada pela atuação das paróquias. Em 1834, porém, esse sistema foi abolido e substituído por outro, as workhouses – domicílios nos quais os trabalhadores desempregados eram confinados para o trabalho em oficinas precárias, recebendo do governo salários inferiores aos menores vigentes nas indústrias99; isto não foi, no entanto, um revés para as camadas superiores, mas sim um avanço na consolidação do sistema capitalista e da racionalidade econômica: em primeiro lugar, o poder público continuava a financiar indiretamente a lucratividade dos setores econômicos mais abastados; secundariamente, num contexto histórico de grande aumento do desemprego, o controle dessas massas desocupadas era essencial para manter a ordem num sistema social extremamente desigual e progressivamente tenso. Para Hobsbawm100, a atualização da Lei dos Pobres tinha ainda uma terceira característica: na medida em que pouco fazia para transformar a realidade social dos mais pobres, ela acabava por funcionar também como uma estigmatizadora dos fracassos sociais, reforçando a simbologia dos párias, acirrando a competitividade entre os trabalhadores e ampliando o distanciamento social.

De fato, a atuação do Estado no sentido de demarcar moralidades e dominar as multidões mais pobres apareceu com mais vigor a partir desse momento. Londres é uma cidade em que, em meados do século XIX, a polícia – a mais nova e importante instituição social vigente – prende cerca de 80 mil pessoas por ano; 5 mil pessoas desaparecem durante o mesmo período sem que as suas famílias saibam o que ocorreu com elas.101 O sistema de vigilância dos trabalhadores não se restringe, então, às fábricas: ele está colocado em cada esquina, observando, enumerando e classificando-os. O combate à vagabundagem se torna política pública prioritária. Num contexto de crescente miséria, a legislação se tornava cada vez mais repressiva: todos os indivíduos que não tivessem trabalho ou ocupação podiam ser presos ou chicoteados; caso cometessem furtos (inclusive de alimentos, para sobreviverem), seriam marcados a ferro, teriam as mãos decepadas ou até mesmo poderiam ser enforcados.102 As ações realizadas em grupo, como as manifestações, eram consideradas especialmente perigosas; muitas vezes a polícia se mostrou mais severa contra os operários do que contra os ladrões em geral.103 Em 1794, a lei do Habeas-Corpus seria abolida; em 1799, seriam proibidos os clubes de debates; logo em seguida, seria eliminada a possibilidade de criação de associações sindicais104.

Ao mesmo tempo, desenvolviam-se legislações sobre o trabalho propriamente dito105. A maioria daquelas que foram formuladas inicialmente não se deu em razão de pressão dos trabalhadores (já que estes se encontravam extremamente desorganizados nos primórdios do industrialismo), mas sim devido a atuação de reformadores sociais. Elas não tiveram, no entanto, nenhum efeito sobre as condições de trabalho, pelo menos até praticamente a metade do século, quando então o movimento trabalhista inglês começava a dar seus primeiros sinais de maturidade. A primeira legislação sobre o trabalho industrial, especialmente o infantil, data de 1802. Ela limitava o trabalho dos aprendizes a doze horas diárias, sem trabalho noturno. Na medida em que se referia somente aos aprendizes, e não às crianças, foi habilmente contornado pelos empregadores e proprietários de terras (muitos deles foram os próprios autores dessa legislação). Em 1819, seria promulgada uma lei que proibia o trabalho de crianças menores de nove anos nas manufaturas de algodão, e estabelecia a jornada de doze horas para crianças entre nove e dezesseis anos. Em 1833, a Factory Act estabeleceu a proibição do trabalho de crianças menores de nove anos na maior parte das indústrias têxteis; definia a jornada semanal entre 48 e 69 horas para jovens menores de dezoito anos, sem trabalho noturno; o governo ainda definia a presença dos primeiros inspetores para a verificação do cumprimento das leis106. De fato, esta seria a primeira medida que seria minimamente cumprida. No entanto, longe de representar um avanço, ela simbolizava muito mais a formalização e o reconhecimento, por parte do poder público, do trabalho infantil e de sua subjugação a penosas condições de sobrevivência. A primeira medida que realmente expressou a força da atuação coordenada do movimento operário e que teve algum grau de cumprimento foi o Ten Hour Act, a lei de 1847 que estabelecia a jornada de dez horas para jovens e mulheres (sendo depois aumentada para dez horas e meia). Marx considerou esta como a primeira grande vitória do proletariado contra a burguesia.

O Estado, porém, não se restringia a controlar e a regulamentar a vida dos operários; isto é, a polícia não era o único veículo de contato do poder público com a população. Aos poucos, a educação deixava de ser realizada pelas paróquias e gradualmente passava a ser laica (ainda que muitas igrejas continuassem a ser responsáveis pelas crianças, notadamente as órfãs). A maioria das crianças operárias ainda não era submetida ao regime escolar, mas algumas tinham de freqüentar aulas com duas horas de duração após as doze, quatorze horas de trabalho.107 Paralelamente, o Estado se empenhava em criar, a partir de si mesmo, tradições que consolidassem seu papel como uma entidade normativa superior a ser respeitada e admirada. Desenvolvia-se, na Inglaterra, uma idéia de nação: o alistamento militar se tornava obrigatório, se intensificavam os rituais de adoração à família real; festivais eram realizados, com mastros para as bandeiras, procissões, toques de sinetas, salvas de tiros de canhão, etc108. Por um lado, esses eventos representavam uma tentativa não estritamente econômica de diferenciação de costumes entre as classes superiores e o operariado. Por outro, e em especial quando nos referimos especialmente ao nacionalismo, a penetração cultural do setor público na vida desses novos habitantes das cidades representou, na prática, um esforço de substituição das tradições comunitárias por outras, introjetadas de fora, não criadas pelas pessoas que sofriam o seu impacto e que viam estes novos costumes societais como coisas não-suas e situadas acima de suas existências.

A presença desses elementos em meados do século XIX era, no entanto, apenas incipiente. Os estilos de vida tradicionais haviam sido destruídos pela Revolução Industrial, mas o fato é que nada foi automaticamente colocado em seu lugar.109 Muitos dos imigrantes – do campo, de outras regiões da Inglaterra ou mesmo de outros países, como os irlandeses – viviam numa situação de premente inadaptabilidade face ao mundo urbano-industrial. Com efeito, um desejo fundamental do trabalhador pré-industrial era o de ganhar o suficiente para que tivesse um nível de conforto pertinente ao seu nível social; reagia, então, a incentivos materiais para alcançá-lo. Essa concepção, que Thompson denomina a “economia moral da plebe”110, se chocaria frontalmente com a racionalidade econômica liberal que se desenvolvia naquele momento, e seria um mecanismo de resistência dos modos de vida camponeses ao que se viva na cidade. Era comum que os operários, então, na eventualidade de ganharem em um certo momento mais do que o salário de fome a que tinha que se acostumar, passassem a gastá-lo em lazer e em festas. Eles simplesmente não sabiam como melhor viver materialmente numa cidade, ou mesmo como comer os alimentos industrializados, tão distintos dos encontrados no meio rural111. Enquanto os ideólogos liberais de classe média defendiam a teses de que os homens deveriam aceitar os empregos que ao mercado oferecesse, independentemente do lugar ou da remuneração e que por meio da poupança eles se protegeriam da velhice e da doença, os trabalhadores, seguindo a lógica dos costumes de seus antepassados, entendiam que tinham o direito de ganhar a vida como fossem e no caso em que isso não fosse possível, era a comunidade a responsável por mantê-lo vivo. Enquanto a classe média defendia a existência de um sistema de previdência fundamentado em Sociedades de Amigos, os operários tomavam o termo literalmente, isto é, entendendo-os como comunidades de amigos que gastavam os seus parcos rendimentos em reuniões sociais, festividades e rituais112. Na realidade, em muitas ocasiões (não só nas celebrações propriamente ditas, mas também no funerais, entendidos como necessários tributos tradicionais aos mortos e reafirmações comunitárias dos vivos), eles não tinham como realizar os pagamentos; na ausência de um sistema social – seja comunitário, seja governamental – que conseguisse contrabalançar o grau crescente de expropriação existente, a pobreza, por vezes, era ainda maior do que aquilo que seria considerado “normal”.

Certos grupos sociais, como os marinheiros, os mineiros e os artesão, tentaram de alguma maneira adaptar seus costumes à modernidade. Os primeiros multiplicariam as canções a respeito das novas experiências do século XIX, como a pesca de baleias nas costas da Groenlândia; os últimos saudavam a indústria, a ciência e o progresso, ainda que rejeitassem o sistema capitalista: dotados de qualificação, perícia, independência e educação, estavam ainda na fronteira da classe trabalhadora com os setores médios, e se identificavam com alguns dos modos de vida vividos por este segmento (muitos dos artesãos se tornariam líderes dos movimentos sindicais de meados do século). No entanto, conforme avançava o desenvolvimento das cidades, desvaneciam algumas das formas mais tradicionais de se passar os feriados: as quermesses, as competições de luta, as brigas de galo, o açulamento de cães contra touros, a canção folclórica113 – cantada em grupos e continuamente reinterpretada pelas comunidades.

Muitos trabalhadores, contudo, sequer passaram pela ocasião de resistir à sociedade por meio das celebrações tradicionais. Em meio à miséria e ao isolamento social, o imigrante-operário encontrava-se tremendamente desmoralizado. Hobsbawm114 cita cinco indícios do cataclisma que era a Inglaterra de meados do século XIX: o alcoolismo, o infanticídio, a prostituição, o suicídio e a demência. Em consonância a esses elementos, estava o impressionante aumento da criminalidade e da violência despropositada. Este conjunto de elementos representava, então, mais um aspecto da grande insegurança vivida por boa parte da classe trabalhadora, assim como toda sorte de doenças, fome, desemprego e solidão. Pode-se dizer que, em certa medida, havia em comum entre vários daqueles que bebiam exasperadamente, e aqueles que cometiam certos crimes uma pronunciada apatia, uma descrença perante a coletividade, e um notável desejo de fuga perante aquela realidade. As únicas instituições sociais a serem criadas pelos e para os trabalhadores, no sentido forte do termo, seriam a taverna e a capela. Nesse período, a Europa viu acontecer, em geral, uma “peste” de embriaguez. O álcool, diria um operário, era a maneira mais rápida de sair de Manchester. O consumo de cerveja, como vimos, diminuiu consideravelmente no período. Talvez se possa dizer, então, que as bebidas responsáveis pelo aumento do alcoolismo entre as pessoas eram, o gim e o rum115, líquidos com graduação alcoólica até nove vezes superior ao encontrado no destilado com lúpulo. O consumo deste, costume plebeu, não era visto como um ato desmoralizante. Beber gim e rum, pelo contrário, era visto como um símbolo de decadência não só pelas classes médias, mas também pelos próprios trabalhadores, o que exprime a radicalidade da condição desesperadora de muitos indivíduos pertencentes a estre grupo social. Na década de 1840, surgiria uma massiva campanha pela moderação no uso do álcool entre as classes médias e operárias na Inglaterra, na Irlanda e na Alemanha, com sucesso limitado.116

A segunda das instituições sociais identificada com a classe trabalhadora da primeira revolução industrial, a capela, evidentemente não se constituía como uma novidade na vida dessas pessoas. Vimos ainda na primeira seção que a tradição religiosa, especialmente a cristã, era parte relevante da vida plebéia117. A questão é que houve um crescimento substantivo do número de igrejas e, principalmente, de seitas, que passaram a se desenvolver nas cidades, principalmente as menores. Muitas possuíam um caráter fortemente místico e apocalíptico; possivelmente, uma das mais proeminentes foi a interpretação do metodismo feita por John Wesley (1703-1791), que continha elementos fortemente irracionalistas e emotivos articulados com uma forte crença no salvacionismo individual.118 Essa linha teológica se associava a um viés político altamente conservador: os pastores defendiam que a indisciplina não somente podia levar à demissão, mas algo muito pior, “as chamas do inferno”. O fiel, então, se salvaria pelos serviços que prestasse a Deus, sendo um bom cristão por meio de um trabalho zeloso119. Era comum, nos rituais de despertar religioso incitados por estes grupos, que se estabelecesse a histeria coletiva como método de revelação da fé. Naquelas, homens e mulheres sacudiam-se, dançavam até a exaustão, entravam em transes, falavam como espíritos e até latiam como cães. Essa espécie peculiar de união, um misto de diversão numa sociedade carente de alternativas no lazer com a possibilidade de identificação temporária e comunitária entre indivíduos desesperados atraía principalmente os mineiros do norte da Inglaterra, os empregados agrícolas, os pequenos fazendeiros das montanhas e os oprimidos trabalhadores domésticos das indústrias do centro do país; elas em geral coincidiam com períodos de violenta tensão e intranqüilidade, como grandes depressões econômicas e epidemias de cólera120. A associação entre a fé e a disciplina aparecia especialmente com relação ao tempo. Ainda no século XVII, o puritano Baxter oferecia em seus discursos um relógio moral interno para cada homem. Ele defendia o uso de cada minuto como a coisa mais preciosa; cada um deles deveria ser empregado nos deveres. Nesse sentido, a inércia era vista como um mal: era necessário, para aproveitar o tempo – cada vez mais dividido em partes menores – era necessário se vestir rapidamente, se dedicar ao trabalho com diligência constante. O que Wesley fez foi aperfeiçoar esse entendimento sobre o governo do tempo, relacionando-o a uma mercadoria, a uma moeda121

É importante dizer que, se por um lado cresciam as seitas e agrupamentos místicos, por outro ampliava-se de maneira inédita o secularismo em todos os setores sociais. A rejeição consistente ao mundo existente continuava exatamente dentre os mais pobres. As igrejas estabelecidas tendiam a negligenciar os agrupamentos e classes que chegavam às cidades para trabalhar. Os operários, abandonados pela religião organizada, eram atraídos pelas seitas, que em comum tinham a propriedade de rejeitar os rituais elaborados e as doutrinações eruditas. Num terreno instável, onde erodiam as autoridades eclesiásticas tradicionais e a própria noção de experiência, a pregação amadora e o dom da profecia eram privilegiados nas práticas religiosas122.

A religião tinha, então, a capacidade de tentar amenizar a dura vida dos trabalhadores; esse processo não estava circunscrito à tentativa de se criar interpretações que justificassem a ordem existente ou garantissem, em algum plano, a salvação de cada um (ainda que estas idéias fossem especialmente fortes no metodismo). Elas atuavam no sentido de preencher um vazio social – a sensação de isolamento e de alienação – na medida em que criavam meios coletivos de canalizar as tensões do trabalho e suas decorrentes limitações à expressão das emoções, que eram transmitidas abertamente e como legado nos meios comunitários pré-industriais. Elas acabavam por se tornar um método de luta por parte das classes proletárias contra a frieza, a tirania e a desumanidade crescentes da sociedade, uma luta contra o racionalismo da vida trazido pela mentalidade do homem econômico que passava a se disseminar, uma tentativa de se criar, afinal de contas, instituições políticas, sociais e educacionais num ambiente onde elas não existiam, um meio primário e quase espontâneo de expressão dos descontentamentos e aspirações dos indivíduos oprimidos, uma resposta ao controle formalizador das religiões estabelecidas pelas classes superiores, que as moldavam à sua própria imagem123.

Nesse sentido, não se pode dizer necessariamente que a religião funcionou como um freio decisivo para a rebelião dos trabalhadores – nem mesmo quando nos referimos ao milenarismo apocalíptico seguido pelos mais desvalidos, que acabou por ser interpretada como uma rejeição messiânico-revolucionária à ordem existente por parte de muitos ideólogos de esquerda daquele período. Mesmo o wesleyanismo, considerado por vários historiadores como uma das causas para o insucesso das revoluções trabalhistas na Inglaterra, não é considerado por Hobsbawm como a causa das vitórias da reação. Embora esta linha do metodismo e os calvinistas fossem amplamente contrários às insurreições populares (tendo orgulho de que seus membros não participassem das greves), eles eram, ao mesmo tempo, radicalmente opostos ao racionalismo e à reforma liberal. Os congregacionistas, os batistas e os presbiterianos-unitários, da mesma forma, não tinham nenhum respeito pelas autoridades constituídas. É interessante notar que o metodismo não era um grupo coeso; vários de seus integrantes foram presos acusados de propaganda radical; pode-se dizer que o setor primitivista se tornou praticamente a religião trabalhista124. Vários centros wesleyanistas eram também pontos onde se desenvolveu o owenismo e o cartismo, duas das principais forças revolucionárias da Inglaterra da primeira metade do século XIX. A maioria das seitas seguia politicamente o radicalismo jeffersoniano ou jacobino ou, na mais moderada das hipóteses, defendiam um liberalismo moderado de classe média125. O que se percebe é que a religião não era uma opção necessariamente alternativa às lutas políticas. Ainda que muitos ideólogos religiosos pregassem o respeito à disciplina, a vida das classes trabalhadoras num ambiente tão opressor como o mundo industrial acabou, de certa forma, por desconstruir determinadas imagens autoritárias de Deus e dos padres e pastores. Em um momento tão não-sedimentado como aquele, cujas transformações rápidas empreendidas pelo gênero humano também implicavam numa mudança coletiva a respeito das concepções religiosas, os setores mais pobres da sociedade também foram responsáveis por uma reinterpretação da fé, adaptando-a às necessidades daquele contexto, e retirando dela, na maioria das vezes, a própria transcendentalidade e a imaterialidade que marcavam a relação entre os camponeses e o credo em tempos prévios – ainda que em muitos casos a impossibilidade de interpretar aquela realidade tão tensa em termos religiosos resultasse num misticismo que radicalizava o grau da relação metafísica de alguns grupos com as crenças. Mas, de maneira geral, a religião de fato se constituiu como um caminho inicial de refúgio das classes subalternas à exploração do capital; mas essa escolha, contudo, parecia se dar muito mais pela proximidade entre a vida tradicional pregressa e o comunitarismo presente nos encontros, que permitia a formação de laços de identidade entre as multidões esfaceladas e fragmentadas pela pobreza e pela divisão do trabalho.

De fato, a capela e e a taverna – as duas instituições sociais dos trabalhadores na aurora da modernidade – também funcionaram como espaços para o desenvolvimento de ações e organizações políticas de cunho proletário, possivelmente as respostas mais fundamentais dessa classe social à opressão sofrida nesse momento de transição paradigmática das práticas vitais. Os círculos religiosos, como vimos, se configuraram espaços de aproximação e identificação entre os operários-migrantes; as tavernas foram também locais de encontro onde esses grupos perceberam a similitude entre as suas condições e modos de vida. Nesses locais se desenvolveram, ainda em fins do século XVIII, as primeiras sociedades profissionais, também chamadas de círculos ou clubes126. Nelas, os membros buscavam desenvolver atividades de cunho mútuo, educativo e social: apoiavam os companheiros sem trabalho, realizavam festas, enterros, aperfeiçoavam seus ofícios, etc. Elas se desenvolveram primordialmente entre os artesãos e oficiais mais qualificados que sofreram mais diretamente a perda da propriedade dos seus instrumentos de produção. Estas sociedades estavam isoladas geograficamente; seu acesso, então, era fisicamente restrito para muitos; ainda assim, conseguiram atuar como grupos de resistência perante as autoridades e os novos patrões burgueses. Seus propósitos, no entanto, não eram exatamente revolucionários (pelo menos não no sentido moderno do termo), já que o objetivo principal dessas associações era o de proteger os privilégios de monopólio na execução de determinadas tarefas, que começava a se perder conforme a industrialização e as leis de mercado se tornavam cada vez mais hegemônicas.

As formas de protesto que seriam desenvolvidas pelo operariado em boa parte do século XIX teriam sua origem, então, na rebeldia que marcava igualmente as recreações e os protestos presentes nos costumes camponeses/plebeus127, que tentavam, ainda com algum sucesso no século anterior, manter as suas tradições (e, no caso dos artesãos, os seus privilégios). As greves de fome que se desenvolveriam na Manchester de 1817 tinham sua origem ainda no século XVI; as greves propriamente ditas, foram empreendidas pela primeira vez – e de maneira espontânea – na década de cinqüenta do século XVIII em várias regiões da Inglaterra e abrangendo diversos setores nascentes: pedreiros, carpinteiros, marceneiros, marinheiros, lenhadores e operários128. As destruições de máquinas, tão comuns na década de dez do século XIX (realizadas pelo famoso movimento ludita, em alusão a Ned Ludd, pioneiro naquela época na destruição com marteladas de teares da oficina onde trabalhava), já tinham ocorrido nos idos de 1760 – levando à elaboração das leis de pena de morte contra o trabalhador nos casos em que a propriedade era atingida. De fato, mesmo durante a primeira metade do século XIX, a maioria das insurgências populares foi iniciada pelos trabalhadores localizados nos pequenos ofícios – relativamente mais livres e menos afetados pela disciplinação e dominação presentes nas indústrias pesadas – , como sapateiros, tecelões, seleiros, livreiros, impressores, pedreiros, pequenos comerciantes, entre outros129. Muitas das demandas requeridas pelos grevistas não estavam simplesmente ligadas a questões imediatas (e não menos relevantes, é certo), como o aumento do custo de vida. Na verdade, em vários casos, o que estava em jogo eram os valores que se perdiam: justiça, independência, segurança, economia familiar (ou moral), o trabalho infantil, a duração da jornada de trabalho, pelo direito de formação de cooperativas, de sindicatos, etc130.

As demandas de fundo mais político que encontramos com freqüência em líderes trabalhistas do início do século XIX também já haviam sido, em boa medida, formuladas em meados do século XVIII. John Wilkes e Cartwright foram líderes políticos reformadores que clamavam por ampliações nas liberdades civis fundamentais e pelo aumento na igualdade e da universalidade do alcance dos direitos políticos. Seus textos influenciaram diretamente o movimento Cartista das décadas de 1830-40131.

A opressão política às camadas mais pobres, da mesma forma, data ainda do início do século XVIII. Ainda em 1721, seria proibida a organização dos alfaiates; em 1726, era a vez do direito de associação dos marceneiros ser suspensa. Conforme avançava a revolução industrial e, por conseguinte, a hegemonia dos setores burgueses, radicalizava-se a retirada das garantia dos setores mais pobres. As Combination Acts, de 1799, impediriam o surgimento de qualquer sindicato, e simbolizariam o auge desse refluxo conservador132. Os trabalhadores responderiam por meio da formação de sociedades secretas, que ampliavam o seu escopo político dentre as demais funções. A London Corresponding Society, a principal delas, contava com cerca de três mil membros em 1792, e funcionava por meio de contribuições acessíveis aos operários. Ela demandava, dentre outros objetivos, pelo sufrágio universal, a igualdade de representação, a honestidade do parlamento, o fim dos abusos contra os cidadãos humildes, a diminuição dos impostos, uma menor jornada de trabalho e a entrega das terras comunais aos camponeses133. Percebe-se aí, então, o início da adaptação de uma consciência plebéia aos modo de vida sociais, na medida em que passavam a perceber que a sua integração naquele mundo aparentemente só poderia ser feita por meio de garantias mínimas de igualdade político-jurídica.134

Na década de dez, ocorreriam as primeiras grandes greves; o ludismo se disseminaria como prática política fundamental dentre os trabalhadores; a grande crise econômica de superprodução ocorrida após as Guerras Napoleônicas desencadearia uma impressionante marcha da fome iniciada em Manchester em direção a Londres. Esse período de grande declínio geraria as condições para um arrefecimento do conservadorismo nas legislações: em 1824 seria permitida a formação de sindicatos e associações trabalhistas. Surgiriam as primeiras grandes sociedades de ajuda mútua; em meados da década de trinta, avançaria a idéia da formação de uma representação universal das classes operárias em meio a novos refluxos conservadores na legislação sindical. O principal movimento político do período, o Cartismo, radicalizava algumas das demandas presentes há meio século no seio das organizações trabalhistas pré-industriais. No auge da crise econômica mais grave do século na Inglaterra (1842), os cartistas conseguiriam aprovar uma greve geral que contaria com a participação de mais de cinqüenta mil operários. Eles teriam participação fundamental no já mencionado Ten Hour Act, que garantia o teto de dez horas de trabalho diárias para os profissionais135. Paralelamente, alguns grupos de trabalhadores começariam a tentar contornar, na prática, a lógica de funcionamento do mercado. Em 1844 passariam a funcionar as primeiras cooperativas, que recuperavam vários dos pressupostos dos mecanismos de trabalho encontrados em comunidades tradicionais.

Em dois outros aspectos é fortemente perceptível uma incipiente consciência por parte das classes subalternas dos mecanismos que regiam essa realidade até então desconhecida por eles e que, ao nosso ver, também implicaram numa certa aceitação parcial (não tão consciente ou objetiva para muitos) das regras do jogo impostas pelos setores burgueses. A primeira, menos política e mais individual, está ligada ao fato de os trabalhadores começarem a reconhecer que suas habilidades, de fato, eram mercadorias, e que deviam, portanto, ser negociadas enquanto tais nos mercados livres. Todavia, os critérios que adotavam para definir o preço e a qualidade de sua mão-de-obra (e, portanto, a própria percepção a respeito da hierarquia de salários interna ao proletariado) eram primordialmente não econômicos: ligavam-se muito mais às noções de status ainda presentes nos topoi comunitários pré-industriais136. A segunda, mais ligada à própria maneira como os sindicatos funcionavam, relacionava-se à crescente preocupação dos funcionários com o número de horas trabalhados; conforme o fim da primeira metade do século XIX se aproximava, intensificavam as demandas pela redução na jornada de trabalho (exigências que, em certa medida, foram parcialmente atendidas no período, graças ao enorme aumento da articulação entre os setores operários em nome desse fim comum). Os trabalhadores começavam a aceitar a dinâmica de funcionamento dos relógios, que regravam suas vidas infinitesimalmente; na década de 1840, já era possível observar uma diferença essencial no comportamento do operário inglês quando comparado com seu companheiro irlandês: este não possuía, em geral, menor capacidade para o trabalho intenso – ainda que, como vimos, sua situação de penúria ainda mais extrema do que a encontrada nos ingleses mais pobres o levasse a um estado de fadiga muito superior – mas sim por sua falta de regularidade, sua incapacidade (aos olhos da racionalidade liberal) em administrar metodicamente sua energia, o comportamento que alguns especialistas em desenvolvimento econômico deste contexto e mesmo do século XX (ao se referir a trabalhadores dos países da América Latina da África e da Índia) classificariam como indolente, infantil, sem iniciativa, vagabundo mesmo137. A pontualidade no trabalho gradualmente passaria a expressar o respeito para com os companheiros de trabalho; as crianças seria ensinadas nas escolas, desde muito pequenas, sobre a importância do cumprimento aos horários, da ritualização da vida com base nos relógios138. É nesse contexto, então, que a luta pela redução da jornada de trabalho baseando-se no número de horas expressa uma adequação à nova temporalidade; os operários passaram a adentrar aos jogos de poder existentes, reclamando para si direitos com relação à delimitação de seus esforços que fariam pouco sentido num mundo pré-industrial, já que aí o trabalho simplesmente não ocupava a quase totalidade de suas vidas, nem aí seus atos laborais eram limitados por pressões de produtividade que especificavam os procedimentos de início, meio e fim na elaboração de seus produtos em micro-frações de dias (e, posteriormente, de horas), e não mais durante dias intercalados, com alguma presença do acaso em sua escolha e desenvolvimento. Sem espaço para o improviso, triunfaria a racionalidade econômica sobre o gênio humano conforme as gerações se sucediam e o modo de vida industrial se intensificava.

Conclusão

Acompanhamos de maneira introdutória, nesta pesquisa, o que poderíamos classificar como uma das transformações mais radicais e efêmeras já vistas nos modos e condições de vida de um segmento social. Tradições e costumes multisseculares de camponeses de todas as partes das Inglaterra, de artesãos localizados nas incipientes cidades e de imigrantes de várias outras regiões da Grã-Bretanha foram drasticamente transformados, destruídos, tornando-se, na melhor das hipóteses, folclores mimetizados, que por vezes foram reinventados e re-apropriados pelos novos poderes constituídos para fazer valer supostas origens imemoriais de seus próprios domínios139.

Não se pode dizer que a vida dessas pessoas que foram forçadas a migrar – em razão dos cercamentos e da introdução do conceito de propriedade privada nas corporações de ofício – e de seus antepassados imediatos era, para os padrões modernos, confortável. De fato, as más colheitas causadas pelas intempéries naturais resultavam em grande escassez de alimentos; a figura do senhor de terras era vista como uma autoridade quase inquestionável; os padrões de higiene e a expectativa de vida não eram, certamente, elevados; a relação com forasteiros não era, necessariamente, pacífica; para alguns modernos, como Engels, a vida intelectual dessas pessoas era absolutamente vazia, passiva e pobre140. Independentemente da discussão a respeito da melhora ou piora das condições de vida dos setores mais pobres durante a primeira metade do século XIX, o fato é que a transição do mundo plebeu para o modo de vida industrial certamente representou uma transformação absolutamente dramática e traumática para as consciências daquele tempo, o que por si só já seria um enfático “não” às considerações otimistas de autores como Hayek sobre a vida dos trabalhadores naquele período. Ainda que de um ponto de vista mais estrito, Sidney Webb sintetiza adequadamente a crítica a essa percepção:

Se os cartistas em 1837 tivessem pedido uma comparação de seu tempo com 1787, e tivessem obtido um relato justo da verdadeira vida social do trabalhador nos dois períodos, é quase certo que teriam registrado um declínio positivo do padrão de vida de grandes classes da população.”141

A transição para as cidades destruiu modos de vida sem que aqueles que foram atingidos por aquela estivessem preparados; tampouco existiram estruturas sociais que fizessem adequadamente essa adaptação. Os trabalhadores foram lançados para este modo de vida sem que tivessem controle sobre a mesma; os sentimentos de coletividade foram mitigados. Eles viram-se sós, isolados; perderam muito de sua fé tradicional. Sua vida, que até então era uma totalidade, passou a ser fragmentada. Passou a existir uma separação entre ela e o trabalho142, de tal maneira que a vida em si passou a ser especializada para o trabalho, como uma razão metonímica, que se fecha para o resto e é treinada para produzir em ritmos contínuos, rigidamente orquestrados, disciplinados e não espontâneos.

Vários caminhos foram tentados para se resistir à impetuosidade desses processos. Grupos de ajuda-mútua, seitas religiosas, o alcoolismo e outras formas de negação alienada da realidade, a rebelião e os sindicatos; o Estado começaria a tentar (posteriormente com grande sucesso) introduzir um novo cimento social, o nacionalismo, um esforço societal em nome da ordem por meio da recuperação estigmatizada de noções plebéias de lealdade paternalista. Por outro lado, essa entidade, que passava a ampliar enormemente o seu poder e domínio sobre a vida das pessoas, buscaria controlar as grandes multidões que se aglomeravam nas cidades que seriam, pouco a pouco, organizadas. As coletividades ou, no dizer de Foucault, as massas compactas, os locais de múltiplas trocas, as individualidades que se fundem, os efeitos coletivos são abolidos em proveito de uma coleção de individualidades separadas, multiplicidades enumeráveis e controláveis143. Do ponto de vista destas, no entanto, passam a ser seres solitários, detentos seqüestrados e olhados para que a ordem racional permaneça, se estabeleça e se consolide.

As respostas mais efetivas à ordem vieram dos sindicatos, do movimento trabalhista e das organizações revolucionárias que começaram a se gestar nesse período e que recuperavam o legado rebelde dos antepassados e ainda contemporâneos camponeses e artesãos. Muitos criticaram (e efetivamente agiram contra) o racionalismo e mesmo o capitalismo como sistema. O Cartismo não defendia simplesmente o retorno a uma tradição idealizava, pois se reconhecia que, àquela altura, ela já não era mais acessível; buscava-se a igualdade, a dignidade, a liberdade e a independência que estavam postas para as pessoas de algumas décadas anteriores em coadunação com o progresso técnico144. Não pareciam ter em conta, naquele momento, que a não-reflexão sobre este aspecto em específico poderia produzir conseqüências controversas para suas vidas. Não só o expressivo aumento da capacidade de destruição causado pelas guerras, mas a ilusão de que o ganho de produtividade era um ganho para a melhoria de vida do trabalhador. Após as gravíssimas crises econômicas da década de 1840 – que fermentaram, em quase toda a Europa, as lutas revolucionárias mais efetivas daquele século – a revolução industrial daria um novo salto, permitindo um grande salto no consumo e um declínio acentuado do desemprego. As novas gerações, com um contato cada vez menor com os modos de vida preexistentes, acabaram por se conformar à ordem. Pouco a pouco, a sensação de explosão social que tomou conta de toda a Grã-Bretanha durante os trinta anos que se sucederam às Guerras Napoleônicas passou a ser mitigada. Os britânicos deixaram, dessa forma, de ser revolucionários145. Levaria cerca de quarenta anos para que o movimento operário se reestruturasse.

Ainda que as condições de vida observadas na Inglaterra de fins do século XVIII e início do século XIX sejam absolutamente impressionantes (bastando-se lembrar das condições de habitação presentes em Bethnal Green ou da expectativa de vida em Liverpool), o fato é que o processo de industrialização que se desenvolveu neste país foi razoavelmente lento se comparado com outros países. Dessa maneira, pode-se dizer que em países como a Alemanha e a França, Irlanda e Escócia, onde a primeira revolução industrial ocorreu posteriormente e num intervalo de tempo ainda bem menor do que aquele que vimos na Inglaterra (onde se encontrava, como vimos, um processo de semi-industrialização ainda em meados do século XVIII), a radicalidade das transformações nos modos e padrões de vida foi ainda mais drástico146. Talvez este tenha sido um fator relevante para um comportamento mais revolucionário presente nos operários dos outros países e para uma menor acomodação destes à ordem tal qual encontramos, afinal de contas, no movimento trabalhista inglês de meados da década de 1850.

Bibliografia

ABENDROTH, Wolfgang. História Social do Movimento Trabalhista Europeu. São Paulo, Paz & Terra, 1977.

COGGIOLA, Osvaldo Luis Angel. “Da Revolução Industrial ao Movimento Operário – As Origens do Mundo Contemporâneo”. Grupo de Pesquisa História e Economia Mundial Contemporâneas, Março/2007.

ENGELS, Friedrich. The Condition of the Working Class in England. Marx/Engels Archive, disponível em http://www.marxists.org/archive/marx/works/1845/condition-working-class/index.htm (acessado em 03 de Julho de 2008).

FOHLEN. Claude. O Trabalho no Século XIX. São Paulo, Estúdios Cor, 1974.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir – História da Violência nas Prisões. Petrópolis, Vozes, 2007, 33ª Ed.

HOBSBAWM, Eric. A Era das Revoluções. São Paulo, Paz & Terra, 2004, 14ª Ed.

HOBSBAWM, Eric. Da Revolução Industrial Inglesa ao Imperialismo. Rio de Janneiro, Forense Universitária, 2000, 5ª Ed.

HOBSBAWM, Eric. Os Trabalhadores. São Paulo, Paz & Terra, 2000 (b), 2ª Ed.

HOBSBAWM, Eric, RANGER, Terence. A Invenção das Tradições. São Paulo, Paz & Terra, 2002, 3ª Ed.

MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto of the Communist Party. Marx/Egels Archive, disponível em http://www.marxists.org/archive/marx/works/1848/communist-manifesto/index.htm, acessado em 03 de Julho de 2008.

PALMADE, Guy. La Epoca de la Burguesia. Cidade do México, Siglo, 1980, 4ª Ed.

SUÁREZ, Fernando. “La Primera Etapa del Sindicalismo”. IN Historia del Movimiento Obrero, Vários Autores, CEDAL: Buenos Aires, 1972, pp. 129-160.

THOMPSON, Edward P. A Formação da Classe Operária Inglesa. Rio de Janeiro, Paz & Terra, 1987, Vol. I.

THOMPSON, Edward P. Costumes em Comum. São Paulo, Companhia das Letras, 2002.

THOMPSON, Edward P. Tradición, Revuelta y Consciencia de Clase. Barcelona, Critica, 1984, 2ª Ed.

1Declaração feita por um oficial fiandeiro de algodão ao público de Manchester, às vésperas de uma greve, citado por THOMPSON, 1987, p. 25.

2HOBSBAWM, 2000, p. 75.

3COGGIOLA, 2007, p. 26.

4A expressão é de THOMPSON, 2002. O autor se refere principalmente aos padrões sociais e culturais de grupos que ainda se encontravam a situação de liberação do feudalismo, localizados especialmente no campo e ainda submetidos aos grandes proprietários de terra e à gentry (pequena nobreza).

5HOBSBAWM, 2000, p. 28.

6COGGIOLA, pp. 6-11.

7HOBSBAWM, 2000, p. 28.

8Cit. por Coggiola, 2007, p. 11.

9HOBSBAWM, 2000, pp. 24-25

10Idem, 2004, p. 44-45.

11THOMPSON, 1987, p. 184.

12Idem, ibidem, p. 190.

13PALMADE, 1980, p. 165.

14Temos em conta, por certo, que não havia homogeneidade nos costumes entre as diferentes comunidades existentes em vilarejos e pequenas cidades inglesas. Nossa preocupação não está em identificar as especificidades regionais de cada costume, mas sim de contrapô-los, enquanto práticas sociais, àquelas que seriam realizadas com o desenvolvimento da revolução industrial.

15ENGELS, “Introdução”, s/p.

16THOMPSON, 2002, p. 16.

17Idem, ibidem, pp. 17-18.

18THOMPSON, 1987, pp. 203-212.

19HOBSBAWM, 2004, p. 46.

20FOHLEN, 1974, p. 35.

21FOUCAULT, 2007, p. 128.

22HOBSBAWM, 2000, p. 80.

23THOMPSON, 1984, p. 261.

24THOMPSON, 1984, p. 245.

25THOMPSON, 2002, pp. 21-22.

26THOMPSON, 1984, pp. 21-22.

27Cf. o Capítulo 1 de “Era das Revoluções” (HOBSBAWM, 2004).

28ENGELS, “Introdução”, s/p.

29THOMPSON, 1984, p. 18-19.

30COGGIOLA, p. 23.

31FOUCAULT, 2007, pp. 124-125.

32ABENDROTH, 1977, p. 14.

33FOHLEN, 1984, p. 39.

34FOUCAULT, 2007, pp. 146-147.

35Artigo primeiro do regulamento da fábrica de Saint-Maur, cit. Por FOUCAULT, 2007, p. 129.

36FOHLEN, 1984, p. 38.

37HOBSBAWM, 2000. p. 80.

38COGGIOLA, 2007, p. 14.

39THOMPSON, 1984, p. 276.

40Relatos de operários e de textos sindicais de cidades como Londres, Dundee, Sadler e Todmorden em THOMPSON, 1984, pp. 277-281.

41Citado por HOBSBAWM, 2000, p. 81.

42THOMPSON, 1987, pp. 27-28.

43FOHLEN, p. 39.

44HOBSBAWM, 2004, pp. 296-297.

45Idem, ibidem, p. 72.

46COGGIOLA, 2007, p. 25.

47THOMPSON, 1987, p. 202; FOHLEN, 1974, p. 43.

48Idem, ibidem, p. 210.

49HOBSBAWM, 2000, pp. 79-80.

50FOHLEN, 1974, p. 42.

51THOMPSON, 1987, pp. 196-197.

52HOBSBAWM, 2004, pp. 300-301.

53FOHLEN, p. 43.

54HOBSBAWM, 2000, p. 86-87.

55Idem, Ibidem, p. 80.

56COGGIOLA, 2007, p. 7; 13. HOBSBAWM, 2000, p. 27; PALMADE, 1980, p. 172.

57COGGIOLA, 2007, p. 7.

58THOMPSON, 1987, p. 192-193.

59COGGIOLA, 2007, p. 24.

60HOBSBAWM, 2000, p. 85-86.

61O censo de 1851 apontou que em praticamente todas as cidades, os migrantes superam a população nativa (THOMPSON, 1987:195).

62PALMADE, 1980, p. 137; ENGELS, (1844), “Irish Imigration”, s/p. Hobsbawm (2000 (b):399-429), dentre outras preocupações, realiza nesse artigo um importante estudo relacionando a percepção dos trabalhadores com relação ao status de cada ofício e os salários oferecidos.

63PALMADE, 1980, p. 166-167. Thompson (1987:193) afirma que a taxa de mortalidade infantil durante as três ou quatro primeiras décadas do século XIX foi muito mais alta nas novas cidades industriais do que aquelas que permaneciam rurais (o índice nas primeiras talvez chegasse a ser duas vezes superior ao encontrado nas segundas).

64THOMPSON, 1987, p. 191-192. Esta questão será melhor debatida no final desta seção.

65Idem, ibidem, p. 196.

66Tabela adaptada da encontrada em THOMPSON, 1987, pp. 200-201 e dos dados de PALMADE, 1980, p. 167. Os números se referem à idade média de falecimento dos indivíduos pertencentes a cada segmento analisado.

67THOMPSON, 1987, p. 210.

68FOHLEN, 1974, pp. 44-45.

69Idem, ibidem.

70THOMPSON, 1987, p. 197-198..

71Idem, ibidem, p. 197.

72Idem, ibidem, p. 199.

73HOBSBAWM, 2004, p. 301.

74THOMPSON, 1987, p. 193.

75Idem, ibidem, p. 194.

76ENGELS, (1844), “The Great Towns”, s/p.

77Idem, ibidem.

78Idem, Ibidem. A citação é de G. Alston, pregador da igreja de St. Philip.

79ENGELS, (1844), “The Great Towns”, s/p.

80HOBSBAWM, 2004, p. 282.

81Idem, 2000, p. 83.

82THOMPSON, 1987, p. 197.

83HOBSBAWM, 2004, p. 287.

84Idem, ibidem, p. 289.

85THOMPSON, 1987, p. 179-181.

86HOBSBAWM, 1987, p. 209.

87ENGELS, (1844), “The Great Towns”, s/p.

88Idem, ibidem, s/p. O receio de que estivessem de fato consumindo produtos adulterados e estragados fazia com que muitos trabalhadores, quando possível, optassem por comer o que pudessem “matar com a própria faca”, isto é, rejeitando o sistema de mercado que era introduzido em nome da manutenção de uma economia de subsistência (THOMPSON, 1987, p. 182).

89Idem, ibidem, s/p.

90HOBSBAWM, 2000 (b), “O Padrão de Vida Inglês de 1790 a 1850″, pp. 83-129.

91THOMPSON, 1987, pp. 28-34.

92Idem, ibidem, p. 184.

93HOBSBAWM, 2004, p. 283.

94THOMPSON, 1987, pp. 185-186.

95COGGIOLA, 2007, p. 13.

96THOMPSON, 1987, p. 192.

97HOBSBAWM, 2000, p. 86. Em (2000 (b), pp. 93-129), o autor demonstra, entre outras coisas, o declínio na produção de carne durante o período 1800-1840.

98COGGIOLA, 2007, p. 12.

99HOBSBAWM, 2000, pp. 82-83.

100Idem, ibidem, p. 82.

101PALMADE, 1980, p. 173.

102 COGGIOLA, 2007, p. 12.

103 FOUCAULT, 2007, p. 214.

104 ABENDROTH, 1977, pp. 16-17.

105 Para além daquelas, como a legislação de 1769, que protegiam as máquinas contra os trabalhadores por meio da condenação à morte daqueles que tentassem destruí-las. Cf. COGGIOLA, 2007, p. 27.

106 SUÁREZ, 1972, p. 148; COGGIOLA, 2007, pp. 12-14.

107 FOHLEN, 1974, p. 43.

108 HOBSBAWM & RANGER, 2002, pp. 9-14; 111-115.

109 HOBSBAWM, 2000, p. 79.

110 THOMPSON, 2002, pp.

111 HOBSBAWM, 2000, p. 82.

112 Idem, ibidem.

113 HOBSBAWM, 2000, pp. 84-85.

114 Idem, 2004, p. 282-285.

115 THOMPSON, 1987, p. 182. O autor afirma que houve um acentuado aumento no consumo destas bebidas durante o período 1820-1840.

116 HOBSBAWM, 2004, p. 283.

117 Idem, Ibidem, p. 305. O autor afirma que, até o início da Revolução Industrial, o “campesinato permanecia totalmente fora de qualquer linguagem ideológica que não se expressasse em termos da Virgem, dos Santos e da Sagrada Escritura, [para além] dos deuses e os espíritos mais antigos que ainda se escondiam debaixo de uma faixa levemente cristã.”

118 Idem, ibidem, p. 316.

119 COGGIOLA, 2007, p. 14.

120HOBSBAWM, 2004, p. 317-318.

121 THOMPSON, 1984, pp. 280-283.

122 HOBSBAWM, 2004, pp. 307; 312; 314.

123 Idem, ibidem, pp. 309; 316-318.

124 Idem, 2000 (b), pp. 37-47.

125 HOBSBAWM, 2004, pp. 316-317.

126 SUÁREZ, 1972, pp. 129-130. Já nos referimos às mesmas quando discutimos o confronto entre a economia moral da plebe e a racionalidade econômica liberal, ainda no início desta última seção.

127 THOMPSON, 2002, pp. 18-19.

128 COGGIOLA, 2007, p. 27. Na França, as greves se iniciaram ainda mais cedo: em 1724, os operários chapeleiros de Paris declararam greve em razão de uma redução injustificada de seus ordenados; para financiar as ações de represália à medida, desenvolveram uma “caixa de greve”.

129 THOMPSON, 1987, pp. 14-16.

130 Idem, ibidem, pp. 27-28.

131 COGGIOLA, 2007, pp. 27; 33.

132 Idem, ibidem, p. 29.

133 Idem, ibidem, p. 33; SUÁREZ, 1972, p. 133. Os líderes do movimento foram presos em 1975, e então esta sociedade começou a entrar em declínio.

134 ABENDROTH, 1977, p. 16.

135 COGGIOLA, pp. 35-38.

136 HOBSBAWM, 2000 (b), pp. 400-403.

137 THOMPSON, 1984, pp. 286-287..

138 Idem, ibidem, pp. 291-292.

139 A obra de Hobsbawm e Ranger, A Invenção das Tradições (2002), é um excelente esforço de investigação e desmistificação a respeito de vários dos costumes mais arraigados e definidores de nacionalidades como a inglesa, a galesa e a escocesa. Muitos foram criações totalmente novas, de fins do século XIX; outros foram re-apropriações dos topoi plebeus, outros foram invenções realizadas para sedimentar a diferenciação social entre ricos e pobres.

140 ENGELS, (1844), “Introduction”, s/p.

141 Cit. Por HOBSBAWM, 2000 (b), p. 111.

142 THOMPSON, 1984, p. 288-289.

143 FOUCAULT, 2007, p. 166.

144 HOBSBAWM, 2000, p. 84.

145 HOBSBAWM, 2000, p. 87.

146 Idem, ibidem, pp. 83-86. Cerca de um milhão de irlandeses morreria de fome durante a crise de 1846-47, naquilo que foi considerado por Hobsbawm como a maior catástrofe humana do século humano do século XIX quando se observa a proporção de mortos perante o total da população (cerca de 25 por cento).



13 Responses to “Condições e Modos de Vida do Operariado Inglês da Primeira Revolução Industrial (1780-1840)”

  1. 1 LordRD

    Espanta-me que ninguem tenha comentado trabalho de tamanha qualidade.

    Muito obrigado 🙂

  2. 2 Lucas Gibran

    excelente texto. parabéns e obrigado 🙂

  3. amei o texto:) …meu parabéns e obrigada :):):):):):):):):):):):):):):)

  4. 4 karllen

    Exepcional!!! o texto é primoroso! muito bom mesmo, estou necessitando de
    um texto sobre a revolução industrial do Hobsbawm… seu texto será de grande valia.
    muito obrigada!
    pode deixar que vc será devidamente citado!!

  5. 5 Mariana

    Muito bom o texto, está bem explicado, contém todas as informações que eu necessitava. Me ajudou muito. Obrigada e parabéns!

  6. 6 layane alves

    amei o texto…..parabens!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! layane alves

  7. 7 denise guedes da silva lima

    parabeens pela criatividadee, muuito bom o texto me ajudou muuito:)

  8. 8 kelly

    terminei minha pesquisa atraves desta pagina

  9. 9 Eduardo Roberto da Silva

    Texto muito bom, da hora mas não comenta o trabalho infantil.
    Fala que existiu mas não como era.

  10. 10 Ygor Hugo

    Muito bom, um texto grande e muito bem explicado !!!
    Muito obrigado pela ajuda.

  11. 11 glsa suélen

    adorei precisava muito deste texto,esta muito bem esplicado

  12. 12 junior

    gostei muito mim ajudou

  13. Muito bom o texto , me ajudou bastante no pequeno trabalho de História !

    #MeusParabéns!


Deixe um comentário