Hedonismo, Controle e Emancipação: A Crítica da Individualidade Contemporânea e a Alternativa Emancipatória em ‘Clube da Luta’

11set08

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Trabalho Final apresentado à disciplina “Indivíduo, Razão e Liberdade”.

Prof.ª Maria Helena Oliva Augusto.

Sérgio Roberto Guedes Reis.

Bacharelado em Relações Internacionais.

Julho/2008.

Introdução

O filme “Clube da Luta” (Fight Club), dirigido por David Fincher e baseado na obra literária homônima de Chuck Palahniuk, foi lançado nos Estados Unidos em 1999. A quantidade e o tom dos comentários à obra fizeram com que a obra cinematográfica fosse considerada como uma das mais polêmicas daquele ano1. No Brasil, o “Clube da Luta” tornou-se lamentavelmente conhecido no contexto dos assassinatos a esmo cometidos por um estudante de medicina em uma sala de cinema de um shopping center da cidade de São Paulo. O filme, exibido enquanto o crime se desenrolava, chegou a ser identificado como inspiração para a sua realização2. Posteriormente, a película foi associada de maneira razoavelmente similar pela revista semanal de maior circulação no país, desta vez colocando-a como feito terrorista similar ao ocorrido em 11 de Setembro de 20013. De certa maneira, pode-se afirmar, então, que a recepção do filme nos meios de comunicação brasileiros acabou por se dar de maneira bastante enviesada; diferentemente do cenário norte-americano, no entanto, a polêmica que aqui se desenvolveu relacionou-se com fatos políticos imediatos, o que impediu uma compreensão mais ampliada das propostas revolucionárias da obra.

Tendo-se em vista a perspectiva crítica da obra literária e do filme perante a sociedade contemporânea – notadamente o modelo ocidental de organização social –, o objetivo deste trabalho é o de tentar identificar, sob a luz das discussões desenvolvidas no decorrer do curso ministrado sobre “Indivíduo, Razão e Liberdade”, algumas das temáticas que consideramos mais relevantes nessa crítica, notadamente a questão da fabricação do indivíduo e do controle social que se desenvolve no ambiente do narrador da história, as dimensões do público e do privado aí presentes. Nossa hipótese é a de que a película se constitui como um experimento de teoria crítica, isto é, ao mesmo tempo em que se manifesta uma objeção a uma determinada concepção de realidade existente promove-se um modelo alternativo. Nesse sentido, cabe a nós observar, então, se de fato é gestado um novo indivíduo ou um novo sujeito neste processo revolucionário, de que maneira isso ocorre e em que sentido estão colocadas as transformações nesta individualidade em si e perante a sociedade.

A seleção de determinados trechos do filme funcionará como ponto de partida para a realização de discussões bibliográficas que permitam determinadas compreensões sobre os conteúdos e as propostas observados na película. Torna-se necessária, num primeiro momento, a apresentação sintética da história do filme, que será realizada a seguir.

Resumo do Enredo da Obra

O filme, com roteiro adaptado do livro homônimo, pretende ser contemporâneo ao momento de sua exibição, isto é, busca-se reproduzir nas cenas uma certa realidade social de uma grande cidade norte-americana de fins da década de 1990. A história é contada por um narrador (vivido por Edward Norton) que, em boa parte do filme, não possui nome. Esse narrador, funcionário de alto nível de uma grande montadora de veículos, é o responsável por ir até os locais de acidentes de automóveis da marca para a qual trabalha para que verifique a possibilidade daquele ter ocorrido por falha mecânica, para que então um recall4 seja, ou não, convocado – tal chamado é baseado em critérios exclusivamente econômicos. O narrador começa a sua história revelando duas sensações que o consomem: a necessidade contínua e crescente de consumir, de comprar os melhores e mais caros móveis e apetrechos para seu apartamento de luxo e uma enorme e estranha sensação de vazio, dor e, ao mesmo tempo, latência, que o impede de dormir e mesmo de saber onde está e o que está fazendo. O narrador busca ajuda de um terapeuta, que não atende seu desejo por calmantes e sugere sua ida a grupos de auto-ajuda. Lá, ele tem contato com pessoas em condições físicas e psicológicas muito mais graves do que as dele: tuberculosos, portadores de leucemia e todos os demais tipos de câncer e parasitismos. É ali onde se sente à vontade para chorar diante de desconhecidos, e onde consegue sentir-se bem o suficiente para voltar a dormir bem depois de vários meses de insônia. Ao mesmo tempo, contudo, conhece Marla (Helena Bonham-Carter), uma jovem mulher que, assim como ele, visita os centros de auto-ajuda sem efetivamente fazer parte dos mesmos. Sua presença incomoda profundamente o narrador, que volta a se sentir desconfortável, incapaz de dormir. Ele resolve, então, realizar uma divisão de dias de visita, para que não volte mais a encontrá-la.

O narrador volta às viagens de rotina e, em uma delas, conhece Tyler Durden (Brad Pitt), um excêntrico e crítico vendedor de sabonetes. Uma identidade incomum desenvolve-se entre os dois durante a breve conversa. Pouco a seguir, o narrador descobre que seu apartamento implodiu, destruindo-se completamente. Entra em contato com Tyler, que o encontra e promove uma discussão crítica sobre o consumismo presente na sociedade atual. Tyler convence-o a morarem juntos, numa casa abandonada e em péssimas condições. Antes, no entanto, Tyler sugere, subitamente, uma luta corporal entre os dois, que é hesitantemente aceita pelo narrador. O conflito se desenvolve e, após concluído, ambos sentem-se realizados. A experiência se repete no mesmo local, e alguns curiosos aparecem para observá-la. Paralelamente, o narrador começa a se sentir melhor novamente: pouco a pouco passa a se importar menos com as pressões do chefe e as formalidades do trabalho. Sua relação com Tyler se intensifica. As lutas começam a ser praticadas por outras pessoas, e gradualmente, mas sem qualquer alarde, o Clube da Luta passa a ser conhecido nos meios subterrâneos da cidade. O telefonema de Marla para o narrador, num contexto de tentativa premeditadamente mal-sucedida de suicídio por parte dela, esfria o ânimo do personagem vivido por Edward Norton. Marla passa a freqüentar a casa da dupla, mas sua presença só é em geral percebida pelo narrador devido à intensidade do sexo praticado por Marla e Tyler. A relação do narrador com Marla continua sempre estremecida e incompreensível.

Tyler é revelado como sendo uma espécie de subvertedor da ordem em pequena escala: responsável por trocar os rolos dos filmes durante as exibições cinematográficas, Durden inclui, de tempos em tempos, frames com conteúdo fálico entre as cenas exibidas, influenciando as subjetividades dos espectadores sem que estes percebam. Paralelamente, atua como garçom em hotéis cinco estrelas, praticando escatologias com os requintados pratos antes de serem servidos aos exigentes clientes. Seu trabalho principal, no entanto, é a produção de sabonete; tal atividade, no entanto, não só possui fins financeiros, mas também estratégicos. É por meio desse material que se torna possível a fabricação de bombas e outros artefatos bélicos. Tyler e o narrador roubam gordura humana para a realização de tal feito. Tyler faz o narrador passar por uma intensa e dramática experiência de dor simbolizada por um beijo em seu pulso acompanhado de pó químico. O narrado se torna mais confiante e desafiador em sua relação com seu chefe, mas a relação com Marla mantém-se fria. O narrador reencontra colegas do grupo de auto-ajuda, que agora participam do Clube da Luta; este é paulatinamente ampliado: a tática empregada por Tyler é a de sugerir aos seus membros que provoquem lutas com transeuntes nas quais estes ganhem.

O narrador começa a ser pressionado pela polícia local acerca da responsabilidade sobre a implosão de seu apartamento. Seu comportamento é cínico, e Tyler parece se responsabilizar pelo ocorrido. A interação com o chefe chega ao nível da chantagem extrema diante do conhecimento do narrador sobre o funcionamento da empresa automobilística; o personagem de Edward Norton simula uma luta contra o chefe; seu auto-flagelo acaba por convencê-lo a financiar o ex-funcionário, o que significa uma vertiginosa ampliação do escopo de atuação do Clube da Luta. A atuação do grupo se potencializa, saindo dos porões: seus integrantes começam a intervir na ordem social por meio de pequenos atos: alteração de placas e outdoors, alteração de folders encontrados nos assentos de aviões, explosão de loja de informática, uso de excremento de pombos para sujar carros caros, etc. O próximo passo, ainda mais grandioso, é a formação de um exército, que implica na transformação do Clube da Luta no “Projeto Destruição”. Desenvolve-se grande intervenção em notável empreendimento particular da cidade, evento noticiado com destaque pelos meios de comunicação. O narrador, que emerge cada vez mais como expectador, parece não entender exatamente o que ocorre. Após o discurso desafiador do comissário policial o grupo, rigidamente selecionado, o seqüestra e o ameaça caso continue com as investigações. O narrador realiza, posteriormente, um insólito passeio de automóvel com Tyler; a relação estremece diante do sentimento de exclusão e não participação nas decisões do Clube. Tyler força um acidente de carro enunciando-o como uma experiência de “quase vida” para os presentes no automóvel. No dia seguinte, o narrador não mais encontra Tyler em casa. Sente-se abandonado, enquanto os demais integrantes do grupo desenvolvem suas atividades de maneira intensa. Em outra ocasião, seu colega dos tempos do grupo de auto-ajuda é morto durante uma missão (sobre a qual o narrador não tinha conhecimento). Enquanto os integrantes do Clube buscam encobrir as evidências por meio de um enterro sumário do falecido, o narrador clama por seu reconhecimento como um indivíduo. Tal reflexão é compartilhada pelos demais com intensidade, de maneira até massificada.

O narrador parte em busca de Tyler pelo país. Tem a sensação de sempre chegar atrasado. Percebe que Clubes da Luta estão se desenvolvendo em diversos estados, mas os locais sempre se negam em oferecer informações sobre Durden. O estado constante de deja vu, no entanto, é desfeito quando um dos interpelados pelo narrador revela, para a surpresa do narrador, que ela estivera presente naquele local apenas alguns dias antes. É revelado ao narrador, então, que seu nome é Tyler Durden. Ele recorre à Marla e obtém a confirmação. Descobre, então, que a figura de Brad Pitt é, na verdade, seu alterego, só aparece para ele e toma controle de sua existência nos momentos de breve sonolência do narrador. Ele também toma consciência do plano final do grupo: a destruição de todo o sistema financeiro norte-americano por pelo a derrubada dos prédio das companhias de cartões de crédito da cidade. O narrador se encontra com Marla, tenta se redimir, mas não obtém sucesso. Tenta obter mais informações sobre o plano para tentar impedi-lo; percebe que os funcionários do prédio também participam do Clube; o mesmo ocorre quando tenta denunciar a si mesmo na delegacia. Em sua fuga, encontra seu alterego; tenta desativar uma das bombas, mas também falha. A luta com Tyler é peculiarmente intensa, mas é derrotado. Na última cena do filme, aparece no alto de um prédio com vista para aqueles que serão destruídos. Busca convencer Tyler para que não siga adiante, mas este reforça a necessidade de, por um lado, restaurar o reequilíbrio econômico na sociedade e, por outro, fazer com que o narrador assuma a responsabilidade por seus atos, pois na realidade foi ele quem os fez. Paralelamente, o personagem de Edward Norton vê Marla ser trazida à força por membros do Clube. Por um instante, visualiza-se no controle da situação, e atira contra si mesmo como maneira de se libertar de Tyler. Ele obtém sucesso e, apesar de ferido, consegue se juntar à Marla e, no take final, assistem de mãos dadas a implosão dos prédios.

Após esta sucinta descrição factual do filme a ser analisado, cremos já estar em posição de mais propriamente compreender o caráter da crítica à sociedade realizada na película, para que então cogitemos, em outra seção, acerca da possibilidade de gestação de uma nova individualidade do decorrer do processo de formação revolucionária do personagem principal.

I) Tyler5, um Indivíduo Contemporâneo

Nesta primeira seção, buscaremos compreender a crítica da individualidade contemporânea presente no filme por meio de três chaves de leitura: a fabricação e o controle dos indivíduos, o hedonismo e a sensação de latência e, de um ponto de vista mais analítico, a questão da delimitação dos espaços privados e dos espaços públicos que compõem a vida de Tyler Durden. Acreditamos que as escolhas de autores como Foucault (1977), Beck (1992), Sennett (1988 e 1999), Lasch (1983), Habermas (1983) e Arendt (1983) sejam suficientes, neste momento, para que discutamos as temáticas que gostaríamos de tratar. No desenvolvimento de cada tópico, eventualmente nos utilizaremos de falas encontradas no filme, a fim de enriquecer a linha de interpretação proposta.

a) Fabricação e Controle do Indivíduos

O primeiro aspecto a ser observado no ambiente do filme é o ambiente de trabalho no qual Tyler se encontra no início do filme. Conforme já mencionado, Tyler trabalha para uma indústria multinacional de automóveis como o responsável pela verificação da necessidade de recall dos veículos. Do ponto de vista puramente visual, a mesa de Tyler aparece como asséptica e organizada. Inevitável encontrar no canto da mesa, contudo, o típico copo plástico tamanho grande de uma conhecida cafeteria. O branco predomina como cor da ordem e da limpeza. O narrador encontra-se formalmente vestido com roupas sociais limpas e bem passadas. No entanto, sua permanência no local de trabalho não corresponde ao total de seu tempo de serviço. Sua profissão é burocrática, mas não expressa exatamente o burocratismo das funções administrativas conhecidas como as mais rituais. A função mais relevante de Tyler é a de viajar por todo o país para fiscalizar a investigação de cada acidente de carro da marca de sua empresa a fim de verificar a existência ou não do risco de convocação coletiva. Estar sujeito à ocorrência dos acidentes é, então, estar sujeito a uma certa imprevisibilidade, ainda que se saiba, afinal das contas, que as viagens sejam inevitáveis. Contudo, seu serviço não passa exatamente pelos mesmos passos óbvios: logo no início do filme seu chefe revela uma súbita mudança de planos. Tyler não deve mais compor o relatório do caso em que trabalhava, mas sim fiscalizar outro, que acabara de ocorrer, por ser mais importante aos olhos da empresa.

A ida aos locais de acidente é, evidentemente, mediada pelas viagens de avião. Tyler viaja para tantos lugares e em tão pouco tempo que perde, em si, a noção de tempo e espaço. Tanto faz, naquele momento, estar em Chicago ou em Dallas, se é oito horas da noite ou seis da manhã. O narrador vive, então, em detrimento do cumprimento de horários e datas sobre os quais não possui o menor controle. Impera, aí, a racionalidade econômica da empresa, que decide baseada nesses critérios sobre a necessidade, ou não, de recall. O local, em si, de trabalho propriamente prático, é absolutamente penoso: observar e analisar minuciosamente os detalhes de um carro totalmente incendiado, não raramente com a presença de restos mortais dos passageiros. Mas a análise precisa ser técnica, fria e objetiva. A observância do detalhe mais mórbido deve permitir ao analista o conhecimento científico adequado para a dedução lógica imediata do problema. Tyler se torna um especialista em falhas, ao mesmo tempo em que ele mesmo não pode falhar, sob o risco de prejuízos milionários para a sua empresa e, subseqüentemente, a ruína de sua carreira. Diante dessa situação de risco e de morbidez, no entanto, a reação dos colegas é de ironia perante a morte alheia: a presença da arcada dentária de uma vítima próxima ao câmbio de um carro destruído é vista como uma boa propaganda contra o fumo. Consolida-se, então, uma racionalidade econômica no ethos social daquele grupo inclusive nas situações mais controversas.

A fabricação social se encontra nos domínios mais infinitesimais e, em tese, menos relevantes. Um exemplo significativo de controle social, que claramente se relaciona com a questão do hedonismo, é a conversa que inaugura a relação entre Tyler e seu alterego. Nesse diálogo, o personagem de Brad Pitt explicita a naturalização do controle das pulsões humanas presente num simples e inocente manual de sobrevivência encontrado em cada assento de avião. Nas ilustrações indicativas, as figuras humanas aparecem calmas e sorridentes enquanto colocam suas máscaras de despressurização e ficam em posição de impacto. A própria máscara de oxigênio, diz o alterego, não está lá para auxiliar o passageiro a respirar, mas sim para deixá-lo sonolento e passivo de forma a aceitar o seu destino sem dor. Cria-se, então, uma notável ilusão de segurança que forma o caráter das pessoas como um imperativo de convivência, mas que, na realidade, implica somente na ampliação do caráter dócil de cada corpo. Essa conversa, aliás, é consecutiva a uma reflexão de Tyler sobre a miniaturização da vida. As mercadorias aparecem como sendo unidades únicas: unidades descartáveis de açúcar, de manteiga, de frango, de xampu, de creme dental, de sabonete, de absorvente, etc. Até as pessoas aparecem dessa maneira (os amigos porção única, melhor comentados no terceiro item desta seção). Formata-se aqui, a nosso ver, uma determinada racionalidade que, travestida da maior realização liberal do ponto de vista do consumo (isto é, a idéia de produtos individuais para indivíduos, no tamanho e na condição certa para seu uso específico, e só seu, sem a necessidade e mesmo a possibilidade de serem emprestados para outrem), acaba por formalizar uma própria concepção descartável do indivíduo. Da mesma maneira, fabrica-se o isolamento na medida em que o apartamento onde Tyler mora é construído especialmente para se evitar o contato social, com paredes espessas de concreto que evitam a passagem de som de um inquilino para outro; a autonomização funciona aí, então, como puro isolamento. Os sentidos são naturalizados e potencializados para se evitar a penetração do outro: desenvolve-se o walk-man, os video-games e complexifica-se as maneiras de interação entre o indivíduo e a televisão, sem que isto deixe de significar a perda de domínio dos meios de comunicação sobre as vidas de cada um.

Podemos observar, com Beck, o quanto o processo de individualização sofrido pelo narrador está longe de se constituir como a realização da autonomia. Pelo contrário, a vida de Tyler se torna cada vez mais dependente das instituições, especialmente da empresa onde trabalha que, em associação com outras grandes corporações (como os meios informáticos, comunicacionais, mobiliários e mesmo alimentícios), preenchem completamente o vazio biográfico de sua existência, sem que isto implique em qualquer ganho de conteúdo.6 Como uma das culminações da sociedade de risco, que radicaliza o próprio sentido da modernização graças em boa medida à tecnologia, o trabalho é tremendamente flexibilizado, tanto em termos temporais como espaciais.7 Os compromissos tradicionais e as relações de apoio são substituídas pelo mercado (de consumo e de trabalho). Os padrões de vida institucionais preenchem, assim, a integralidade da vida de cada um. Este fator, associado com o próprio controle das informações das empresas, por vezes faz com que Tyler viaje de um lado para outro do país sem saber exatamente o que (e por que) o faz. Essa dependência, que modela completamente o seio da vida privada, amplifica as possibilidades de crises individuais. Não se pode mais contar com a experiência familiar ou mesmo de amigos. A única saída, na percepção de Beck, é também institucional: a psicanálise.8

A vida de Tyler é, então, esquadrinhada ao máximo. Cada instante de sua ação é planejado, cada momento o faz produzir, mas não para si, autonomamente, e si para a empresa onde trabalha. A aparência de liberdade no ambiente de trabalho não é somente desfeita pela contínua vigilância do chefe, mas sim pelos próprios regimes de conduta, que não são visíveis a olho nu. Nesse sentido de invisibilidade modeladora do controle, o aumento da sensação de liberdade só significaria, na verdade, a intensificação dos mecanismos de opressão.9

Sennett10 identifica um movimento histórico no ambiente de trabalho que resulta na formação de subclasses no “mundo do colarinho branco”. Tratam-se de pessoas que fazem trabalhos quase-técnicos, funcionais, mas são incapazes de controlar o uso de suas próprias especializações; são o setor que mais se expande no setor de trabalho norte-americano, mas não constituem uma classe. Diante dessa falta de organização pela própria novidade de sua profissão, seus membros são sujeitos a definições institucionais do trabalho, que acabam, como diria Beck, determinando as suas personalidades. Diante dessa dominação, desaparecem os limites entre o eu e o mundo. Reforça-se aí, como veremos, uma lógica narcisista.

b) Hedonismo, Narcisismo e Latência

Tyler começa sua história exatamente pela confissão de que sente um enorme vazio em sua existência, algo que se compara a uma dor, mas não exatamente exprimível. Essa condição o impede de dormir por mais de seis meses. A insônia impede Tyler de saber se está acordado ou dormindo, se o que vive é realidade ou fantasia. De certa maneira, permanece uma sensação de indiferença perante um mundo onde tudo é uma “cópia de uma cópia”. A aparente compensação inicial desse sentimento se dá por meio do consumismo: Tyler é um voraz comprador de artigos mobiliários de luxo para seu imodesto apartamento, que se torna uma réplica das revistas especializadas no tema. Suas compras são realizadas a qualquer hora do dia, em qualquer lugar. Os objetos distinguem-se entre si por meio de uma auto-consideração peculiar, geralmente de fundo étnico-cultural ou referente ao meio natural-selvagem. Tudo que se parece buscar, aí, é autenticidade, inclusive nos detalhes imperfeitos dos objetos, que traduzem seu caráter artesanal e renovam o sentido de, aparentemente, serem feitos sob medida para cada consumidor.

A pergunta de Tyler é o fundamento básico do pensamento narcísico: “Que tipo de louça me define como pessoa?”. A existência humana, que só aparece como material quando se refere às mercadorias, é colocada como apêndice dos objetos. O narrador, quando tem a sua mala retida no aeroporto, sente que perdeu tudo. Esse tudo se expressa, simplesmente, em suas camisas Calvin Klein, suas gravatas AX e seus sapatos DKNY. O sentimento de perda se revela com maior intensidade quando o narrador tem o seu apartamento implodido. Essa sensação é revelada em outra conversa com Tyler, onde afirma que se sentia “quase completo”, já que o guarda-roupa já era bem respeitável, o aparelho de som decente, e o problema do sofá já estava resolvido. No entanto, o mais embaraçoso é que dentro da sofisticada geladeira do narrador não havia nada mais do que dúzias de condimentos, e não comida. A forma, então, toma lugar do essencial, do conteúdo.

A própria maneira com que Tyler se apropria dos grupos de auto-ajuda pode ser observada enquanto manifestação de um comportamento narcisista. Seu comparecimento a um desses grupos, enunciação de um desejo de percepção de uma condição que seja profundamente mais dolorosa do que a sua, o vicia. Em termos práticos, Tyler consegue, após longos meses de insônia, voltar a dormir. Mas ainda que essa convivência com pacientes terminais tenha lhe proporcionado um certo ganho de consciência inicial sobre o próprio sentido da dor, da complexidade da vida e da grandeza e da necessidade de outros níveis de comunicação entre as pessoas, sua interação com esse meio ainda se dá de forma primordialmente instrumental. Tyler vai aos encontros para externalizar a sua dor, o seu choro, ao mesmo tempo em que se conforta com a capacidade dos outros em ouvi-lo descompromissadamente. Em outras palavras, a capacidade das pessoas, “quando estão perto de morrer, [de] ouvi-lo falando ao invés de ficarem esperando por sua vez de falar”. A condição do narrador é, então, a de que busca incessantemente o prazer pelos meios disponíveis, num processo que desconsidera o outro enquanto agente de demandas similares. A preocupação com a auto-satisfação é tamanha que se torna inviável perceber o egocentrismo desse comportamento. Somente com a descoberta de Marla é que ele se dará conta da questão, ainda que continue a não se responsabilizar pela atitude puramente auto-interessada. É nesse sentido em que a relação entre os dois se inicia e se desenvolve de maneira tão tensa.

Sennett descreve o narcisismo como um modo de ser, onde são apagadas as demarcações, os limites e as formas do tempo. O narcisista desvaloriza cada interação ou cenário particular, pois sempre está em busca de uma certa autenticidade que não existe, uma espécie de “experiência verdadeira”11. Tyler, como figura narcísica, busca saber o que está sabendo, e se o que faz é autêntico. Em razão de uma identidade do eu excessivamente expandida, quer enxergar somente as suas ações como reais, e desvaloriza aquelas realizadas pelos outros. Só o eu é motivação, então as relações se tornam apáticas: não há motivação para se estar com o outro.12 Nesse contexto se desenvolve a desconfiança de Tyler com relação a Marla: não lhe parece possível que ela esteja nos grupos de auto-ajuda para querer o mesmo que ele. Ela é, então, vista como uma mentirosa, um câncer, uma turista.

Citando C. Wright Mills, Sennett enuncia a idéia de que quanto mais as pessoas conectem os fatos de classe (ou do trabalho) às suas próprias personalidades, tanto menos as injustiças aí existentes às levariam à ação política ou à revolta13. O fim da separação entre o eu e o mundo, referente ao próprio comportamento das corporações e mencionado na seção anterior, produz individualidades passivas. A defesa contra as opressões (como a situação de morbidez encontrada na verificação das condições de um carro após um acidente) se dá pela divisão do eu em dois, um “eu” propriamente dito e um “a mim”, que não se responsabiliza pelo que ocorre. Sennett14 descreve esse comportamento como parte de um ascetismo mundanal, a expressão do narcisismo como a ética protestante dos tempos modernos. Aquela se configura como uma recusa do prazer próprio nas experiências concretas, que revela uma eterna expectativa não realizada que, no longo prazo, leva a um fechamento do eu ao próprio mundo após o fracasso em percebê-lo como espelho de si. Revela-se a indiferença, o mecanismo tautológico em que “nada é real se eu não puder senti-lo; mas não posso sentir nada”. Revela-se aí a latência sentida tão profundamente por Tyler. O vazio não é jamais preenchível enquanto o indivíduo se fecha para o outro. Numa relção social, ao invés de uma representação corporificada da emoção, desenvolve-se uma representação pura e simples da emoção15. Em outras palavras, só o eu pode se confessar, só á a impulsão para falar, e não para ouvir. É nesse contexto em que verificamos o registro onde Tyler celebra os grupos de auto-ajuda como espaços onde as pessoas param para ouvi-lo, e não para falar.

Lasch, por sua vez, teoriza sobre a substituição do domínio da religião pela terapia, e sobre como este procedimento implica em transformar as queixas coletivas em problemas pessoais, tal qual mencionado por Sennett16. A conscientização de si, expressão da introjeção, é visto como um ganho em si de consciência. Lasch, no entanto, difere de Sennett principalmente, em nossos propósitos, no sentido de entender o ser humano dotado de elementos irracionais que não são racionalizáveis pela política institucional e pela “civilidade”17. Verifica, então, a existência de domínios da paixão que, ao serem expostos no meio político, expressam a necessária penetração de ansiedades pessoais no meio público. A radicalidade do ato político carrega para ele, então, a profundidade desses elementos subjetivos. Em Lasch verificamos, então, que o sistema capitalista a racionalização da vida não dão conta da complexidade da identidade do eu, que não é completamente racionalizável.18 Encontra-se aí uma fagulha para a transformação política e social que, ao nosso ver, se associa com aquela objetivada na película analisada.

Lasch ainda realiza uma importante associação para os nossos propósitos: a identidade entre o narcisismo, a esquizofrenia e a família. A ausência do pai, como no caso de Tyler, e a superproteção da mãe criam crianças que, ao verificarem a falibilidade da educação maternal e não terem para si o modelo da figura paterna, passam a ter a percepção de seu ambiente dominada pelo ego. Emerge um pensamento mágico, fantasioso (como a ilusão de fortaleça interior imaginado pelo narrador, que contava com a presença de um adorável golfinho); a criança passa a se defender, sem perceber o excesso de dependência da mãe. A criança perde os limites do seu “eu”, e por vezes se coloca na posição de substituir o pai ausente, em geral sem sucesso.19 Uma possibilidade é, então, o desenvolvimento de fantasias primitivas com o pai, que passam a dominar o superego. É interessante pensar na possibilidade, então, de que o alterego de Tyler se coloque exatamente nesta posição, dado o intenso sentimento de perda vivido por Tyler quando do primeiro desaparecimento do personagem interpretado por Brad Pitt.

c) Espaços Privados e Espaços Públicos

O personagem-narrador aparece na história como alguém que não dispõe de quaisquer amizades. A relação com seu chefe é instrumental, de cobrança, de resultados. Seus colegas de trabalho são seres anônimos, pessoas desprovidas de nome e história. Tyler simplesmente parece não ter tempo e disposição para desenvolver relações fraternas desinteressadas com as pessoas. É Bob, que mais tarde viria a se tornar membro do Clube da Luta, a primeira pessoa com quem Tyler interage de uma maneira não conflitiva. Na realidade, toda a iniciativa é de Bob, e é essa explosão de energia inicial de aproximação que funciona como catalisador do choro do narrador naquele primeiro momento. Marla surge como grande antítese no seio daquele espaço público dos grupos de auto-ajuda. Mas as tensões são resolvidas sempre no âmbito privado. É nesse cenário de esvanecimento das relações humanas que Tyler desenvolverá a idéia já mencionada da descartabilidade das relações sociais, os “amigos de porção única”. O narrador costumeiramente encontra tais pares nos assentos dos aviões em que viaja. São pessoas com quem se tratam diálogos casuais, de pouca profundidade, geralmente referentes a obviedades do próprio trabalho, e raramente sobre questões familiares, ainda que a idéia de que o outro possivelmente nunca mais seja visto sirva como incentivo para o compartilhamento. Mas Tyler é completamente solitário e sua única relação minimamente mais intensa e não exatamente instrumental (Marla) é totalmente disruptiva. O salto para além dessa condição está quando descobre, de maneira involuntária, seu alterego. É com ele que Tyler é capaz de ter conversas de fundo moral, político e mais intimamente pessoal. É por meio desses diálogos que descobrimos que o narrador praticamente não teve pai, já que este saiu de casa quando o filho tinha seis anos de idade e nunca mais voltou, fazendo com que Tyler fosse continuamente educado somente pela mãe. É nesse momento também que se revela a relação ambígua do narrador com o sexo feminino, que parece se resolver somente no término da obra.

Para Lasch, o processo histórico no qual se desenrolou a educação das massas acabou por transformar radicalmente a família, fragilizando a autoridade do marido perante a mulher e a dos pais com relação aos filhos. O desenvolvimento deste processo faz com que, no longo prazo, seja o capital (a indústria da publicidade, a corporação e o Estado) o responsável pela educação das novas gerações.20

A questão mais específica da relação entre vida pública e privada é bastante polêmica dentre os autores. Cremos ser possível um arranjo que possa combinar de maneira mais adequada as idéias para que compreendamos esta temática no contexto deste filme. A oposição fundamental se dá entre Sennett e Lasch. Enquanto o primeiro denuncia o fim da vida pública e a total preferência dos seres pela vida privada, o segundo verifica exatamente o colapso da personalidade, a invasão do privado pelo público. O ambiente social, cada vez mais hostil, penetra no seio das relações pessoais e faz com que estas se tornem cada vez mais conflitivas: reduzem-se as amizades, os romances e os casamentos.21 Para Sennett, o capitalismo realizou, a partir do século XIX, um deslocamento fundamental: as pessoas passaram a tentar encontrar significações pessoais em situações impessoais, em objetos e nas próprias condições objetivas da sociedade.22 Cremos que a oposição entre os autores pode ser conciliada em nossa análise por meio de sua associação com eventos ocorridos no filme. Por um lado, a vida de Tyler (e a de Marla, sem dúvida, e talvez até mesmo do chefe da empresa retratado) é representada como sendo eminentemente vazia, já que sua existência não é permeada pela presença de outros seres. Não sabemos (e desconfiamos que a resposta seja negativa) se o narrador possui irmãos; a mãe é ausente, o pai é uma figura inexistente do ponto de vista prático; não possui nenhum amigo, e a única relação com uma mulher – desenvolvida em local absolutamente peculiar, e que está longe de ser entendida, no princípio da história, como amizade – é conflituosa ao extremo, mas até mesmo em um sentido infantil, de disputa reificada por “bens particulares” (os grupos de auto-ajuda). É aqui, então, que encontramos a conexão com a reflexão de Sennett. Tyler se sente possuidor de referenciais imateriais (que na verdade são vidas terminais), e busca identificar-se a partir de objetos de alto valor que quase periodicamente adquire. Nesse sentido, talvez seja possível dizer, afinal de contas, que não existe uma unidirecionalidade na causação do esvaziamento da vida de cada um.

Contudo, entendemos que a perspectiva de Hannah Arendt23 sobre nos seja bastante útil neste tema. Isso porque, em linhas bastante gerais, a filósofa identifica no desenvolvimento da modernidade da extinção da diferença entre as esferas privada e pública, que foram submersas na esfera do social. A intimidade, aporia de Sennett, saiu do regime puramente privado para o social a partir do momento em que a propriedade imóvel tornou-se móvel, ou seja, quanto todas as coisas passaram a ser objetos de consumo, especialmente a própria força de trabalho e, em nossa contemporaneidade, a própria existência humana. A distinção entre as esferas pública e privada aparece para Arendt, então, como a diferença entre o que deve ser exibido e o que deve ser ocultado. Nessa interpretação, que identifica no processo mencionado o próprio fortalecimento do modo de vida societal, o homem, ao perder a propriedade da terra (não só em sentido material, mas também existencial), se aliena cada vez mais do mundo, voltando-se para si mesmo. Impossibilita-se aí tanto a idéia do weltbürguer, o cidadão do mundo, como a própria idéia da formação de uma família.24 O voltar para si não é uma afirmação da localidade, pois esta está posta no domínio público. O indivíduo fica, então, sem base, vivendo de maneira flutuante, incapaz de articular o particular com o universal. Sua vida, sem finalidades, perde potência É perfeitamente possível observar, nesse sentido, o quanto a radicalização dessas condições em nosso tempo, isto é a ampliação do terreno da esfera social para aspectos ainda mais infinitesimalmente distantes da vida pública e da vida privada acelera a sensação de estranhamento, de perda de temporalidade e, enfim, de si mesmo, como ocorreu com Tyler no início da obra.

II) Tyler, uma Individualidade Alternativa?

Verificamos na primeira seção alguns aspectos fundamentais da individualidade de Tyler. Nossa tese, a partir de agora, é a de que o modo de vida vivido pelo personagem central representou um processo tal de alienação que a cisão existente no interior de sua individualidade radicalizou-se numa esquizofrenia. Partimos do pressuposto, então, que o caminho vivido pelo narrador no decorrer de sua conscientização é o da aproximação contínua entre a sua existência e a do seu alterego, até o momento de sua superação (o que significaria que sua existência não seria mais relevante para o personagem principal ou, em outras palavras, que o processo de formação de uma nova identidade estaria concluído). Para que então verifiquemos até onde, na concretização desse processo, gestou-se uma nova individualidade, e em que sentido ela se configura como mais liberada perante a anterior, torna-se necessário que realizemos uma caracterização do alterego vivido por Brad Pitt, acompanhemos os eventuais estágios de transformação na individualidade de Tyler e verifiquemos que individidualidade é enunciada nos discursos e das práticas do Clube da Luta.

a) O Alterego de Tyler

O alterego de Tyler surge no filme após uma intensificação de suas viagens de trabalho pelo país e em seguida à introdução de Marla em sua vida, que simbolicamente representa ao fim da eficiência pragmática dos grupos de auto-ajuda em sua vida imediata. Seu alterego aparece, então, como um ganho experiencial significativo em sua vida. Visualmente, emerge como um ser atraente, próximo do modelo ideal de beleza físico enunciado pelas propagandas de grifes de roupas que viriam a ser criticados pelos dois. Do ponto de vista psicológico, seu alterego aparece como um indivíduo dotado de grande poder de iniciativa e de conhecimentos sofisticados de ciências e história. É seu alterego quem o estimula à luta que, afinal das contas, é autodestrutiva. Nossa hipótese, aqui, é que ela se desenvolve como sendo o mais desesperado intento de ganho de materialidade sobre o próprio corpo e, portanto, sobre a própria vida. As ações pontuais de guerrilha compartilhadas pelo alterego expressam um certo grau superior de consciência revolucionária. A questão, contudo, é que a cisão completa entre as individualidades retira o potencial de suas atuações. O alterego de Tyler não é, assim, simplesmente, o seu guia: ele precisa de sua inteligência e de suas experiências prévias para tornar o projeto do Clube da Luta como algo mais do que meramente local.

Por meio de outra maneira de se interpretar a relação, o alterego de Tyler aparece como uma idealização de seu pai ausente. No momento mesmo em que seu alterego o abandona, Tyler expressa a associação entre essa perda e aquela sofrida com relação ao seu progenitor. Esta é uma identificação fundamental de uma personalidade narcisista. Pode-se dizer, que, até praticamente o final do filme o despojo desse tipo de identidade ainda não é possível para Tyler, ainda que o desligamento progressivo seja notório. O primeiro elemento a ser verificado é o fato de que o narrador não se sente mais compelido a assistir televisão. Ele não sente mais falta das imagens fugazes desse aparelho; paralelamente, deixa dese um ávido leitor de catálogos de compra de móveis. Sua leitura, numa inversão surpreendente, passa a ser a literatura infantil, o que poderia expressar uma rememoração inconsciente de uma vida infantil que jamais pode desfrutar por completo. O segundo aspecto a ser tratado é, evidentemente, a mudança contumaz e gradativa da percepção do narrador sobre o seu emprego e acerca de sua relação com seu chefe. A partir do instante em que passa a integrar o Clube da Luta, sua aparência física e seu estado psicológico se alteram retumbantemente. Observamos uma impressionante degradação de seu apego pela estética: ele deixa de utilizar camisas limpas e bem passadas, posteriormente passa a evitar o uso de gravatas; não faz mais a barba com freqüência, não penteia mais o cabelo. Aparece no serviço com evidentes sinais visuais de brigas, com gotas de sangue espalhadas pelo corpo e dentes quebrados. Tyler começa a fumar e passa a ignorar as cobranças de seu chefe. Aquilo que é percebido por este como símbolo de decadência de Tyler e de falta de adequação às rígidas e necessárias normais de adequação e etiqueta padronizadas das relações de trabalho é visto pelo narrador como algo que o impele à vida, que o faz desejá-la de maneira completamente diferente daquilo que estava, até então, estabelecido. Tyler sente-se muito mais fortalecido; ele deixa, assim, em primeiro lugar, de aceitar passivamente as ordens do chefe para, por um momento, ignorá-lo; em seguida, passa a desafiá-lo, até que se coloca em condição de chantageá-lo e ameaçá-lo, ao ponto de forjar um combate violento na própria sala de seu superior.

A questão que não fica respondida (e, neste momento, ainda ão é possível fazê-lo de maneira razoável) é se realmente o acirramento da cisão do indivíduo até o ponto da esquizofrenia se constitui, de fato, como um caminho viável e, principalmente, desejável de emancipação social. No contexto do filme, o alterego de Tyler revela sua concepção favorável a esta hipótese no momento de sua confirmação como existência do narrador. Para ele, o que Tyler sentiu é algo que, em certa medida, todos sentem. Trata-se do desejo de serem quem não são, de acreditarem sê-lo, de fazerem de tudo por isso. O diferencial de Tyler é que ele levou adiante essa sensibilidade, radicalizando-a. Em outras palavras, ele internalizou a contradição dentro de si, e explorou a diferença de potencial entre o que era e o que gostaria de ser de maneira dialética, até o ponto em que foi capaz de superar a sua oposição interna, numa negação determinada. Contudo, mais do que isso, foi dado um conteúdo emancipatório a essa contradição: ela foi capaz de produzir, nos termos de Beck, uma individuação, uma formação de caráter e de personalidade25. Lasch aponta, por outro lado, que a possibilidade de esquizofrenia narcísica está posta muito mais para o desejo de celebridade e de fama (que é estimulado desde as fases mais tenras da vida nas relações maternas e por meio dos media), o que explica a popularidade dos tablóides sensacionalistas e dos programas de fofocas na televisão26.

b) O Ethos do Clube da Luta e o Desenvolvimento de Novas Relações27

A formação do Clube da Luta se dá, como vimos, no próprio autoflagelo de Tyler no estacionamento de um bar. Inicialmente, essa manifestação atrai somente uns pouco curiosos. Aos poucos, no entanto, o número de participantes aumenta consideravelmente. Tyler, na pele de seu alterego, desenvolve um conjunto de regras básico para o funcionamento do Clube. O ponto fundamental é a preservação do anonimato do grupo (que ão deve ser publicamente discutido), mas outros tópicos também são relevantes, por indicarem uma certa moralidade no funcionamento das lutas que desvirtua completamente o sentido das mesmas enquanto conquista de vitórias ou derrotas (lógica competitiva) ou conquista de prestígio. O objetivo claro das regras é o de dirigir os membros da associação no sentido de tratarem suas lutas como terapias, como redescobertas da materialidade da própria vida, como moldes para a consolidação de um novo caráter, não-conformista, não passivo, que compreenda a vida para além de um puro gozar imediato, que veja a morte não como um risco à integridade, mas como manifestação de um desejo de vida, de potencialização de suas condições, em oposição ao ethos narcísico de auto-conservação como modo de vida. A questão inicial que se revela é a de se essa enunciação jurídica delimitada por Tyler não significa a permanência de um poder soberano de um corpo legislativo sobre o resto daquela pequena sociedade, na medida em que as leis são ditadas por um grupo específico e, em tese, moldam os comportamentos dos demais membros. Em nosso entender, esse processo se afasta do positivismo pela própria não formalização de suas regras; elas não precisam ser cumpridas à regra para aquilo que é considerado como bom funcionamento daquele tecido social e, de fato, não o são, o que faz com que o Clube se expanda enormemente num espaço de curto prazo. As regras, então, parecem ser muito mais o sentido de um funcionamento momentâneo, sujeito às especificidades de cada momento.

A incitação à dor, percebida como central para o desenvolvimento das práticas do Clube da luta, é fundamental para a transformação da consciência de Tyler, que encontra naquela um substituto para a permanente sensação de latência que até então ocupava a sua vida. Essa prática radical, mais bem visualizada em momentos como a cena do beijo no pulso acompanhado de pó químico e o acidente de carro provocado pelo motorista (o alterego) funciona como intensificação da identidade de Tyler consigo mesmo, ampliando a sua sensibilidade sobre seu ser social. O primeiro exemplo é o fomentador da crise final de relação entre Tyler e seu chefe; o segundo, mais intenso, precede o abandono do alterego, e faz criar uma sensibilidade quase metafísica no narrador, na medida em que o coloca num sentimento de identidade perante as vítimas de acidentes de carro que até então tão impassivelmente acompanhava como funcionário técnico.

A ampliação do clube, realizada principalmente por meio da provocação de lutas em locais públicos com sujeitos comuns, revela o grau de desconforto e estranheza desses indivíduos perante os estranhos. Diante da passividade do cidadão comum, a disseminação do ethos do Clube da Luta é inicialmente complicado, mas obtém sucesso. O narrador considera que o que ele e seu alterego haviam inaugurado era algo que todos sentiam, mas não tinham coragem de demonstrar ou não sabiam como fazê-lo. A luta, então, aparece como uma técnica superior na canalização das angústias quando comparada com a meditação. Mas não se trata, como vemos, de uma técnica que requeira especialização ou domínio de artes marciais pois, como vimos, não é o espetáculo ou a aniquilação o objetivo do combate. A acessibilidade de sua prática por todos é, então, um aspecto essencialmente democrático de sua constituição.

A conversão do Clube da Luta em “Projeto Destruição”é iniciada por meio de uma rígida seleção de integrantes por Tyler. Várias questões podem, aqui, ser levantadas, pois indicariam uma certa contradição na gestação dessas novas individualidades: Não estaria, no seio desse processo de seleção, um certo vanguardismo? No interior desse mesmo processo, não se perpetuaria, pelos critérios de escolha, uma certa concepção narcísica do homem ideal? Não haveria se tornado Tyler, neste momento, uma figura mitificada, hierarquizada perante os demais integrantes do Clube? Não seria a homogeneização das vestimentas de do corte de cabelo de seus integrantes uma simbolização de um processo de massificação existente no Grupo? Nem todas essas questões podem ser sumariamente respondidas, mas certas ponderações podem ser realizadas. Em tese, a antinomia mais evidente se encontra nos critérios que Tyler aparentemente utiliza na seleção dos integrantes da nova fase do projeto revolucionário. O alterego sugere que os que se alistam devem ser desencorajados de participarem, e as táticas de deserção são várias: a aproximação pacífica, enunciando um mal entendido na suposta convocação e convidando o candidato a se retirar; a aproximação hedonista, que busca desconsiderar os candidatos por serem excessivamente gordos, magros, velhos ou feios; a aproximação autoritária, que busca amedrontar o postulante de chamar a polícia ou mesmo por meio de tentativa de agressão. O que está posto, em nossa consideração, é exatamente o contrário do que parece. Em sentido foucaultiano, Tyler parece buscar uma forma de coesão social que saia dos jogos de poder habituais28. Afinal, o que está em jogo não são padrões estéticos, nem uma moralidade óbvia e acessível ao sistema, mas sim o senso de dignidade e de comprometimento à causa revolucionária. A pergunta subseqüente que se coloca é se os critérios de escolha não seriam autoritários e impraticáveis para alguns. A mensagem do filme, no entanto, parece ser a de que a crença numa causa permite à humanidade superar barreiras auto-impostas e, com isso, potencializar enormemente o seu querer e o seu agir. A permanência de Bob – um doente terminal com câncer nos testículos – no grupo parece ser uma pista nesse sentido. O vanguardismo de Tyler, que também parece bastante evidente, e parece ainda estar bastante preso a uma lógica de celebridade, talvez possa ser visto muito mais como um estado transicional na formação das individualidades do que propriamente uma condição sine qua non para a sua realização. A partir do momento em que temos a noção de que quem está no comando, de fato, é Tyler (pois seu alterego é apenas uma projeção de sua consciência), podemos considerar o tom das falas de seu alterego muito mais como um traço comportamental de sua idealização do que propriamente uma maneira necessária de se proceder com relação ao desenvolvimento de novas identidades e de novos sentimentos de coletividade.

Finalmente, em nossa consideração, a massificação no trato dos novos recrutas aparece, de fato, como uma limitação mais relevante na maneira de agir do alterego de Tyler. É nesse sentido que verificamos a considerável relevância do personagem de Edward Norton na realização teórica de uma verdadeira transformação na concepção social da individualidade. Essa importância, a nosso ver, não é uma coincidência com o desaparecer do personagem vivido por Brad Pitt, e tampouco com a tentativa de retomada de controle da situação pelo personagem narrador, no momento mesmo em que percebe que é ele, como totalidade individual, Tyler Durden, quando finalmente reencontra consigo mesmo após uma longa jornada de experimentações ousadas. Essa interferência essencial do narrador aparece em dois momentos bastante simbólicos do filme: a morte de seu amigo Bob e a tentativa de reaproximação e salvamento de Marla. O falecimento de Robert Paulsen é recebido pelos integrantes do Projeto Destruição como uma fatalidade, um erro estratégico; a resposta para este problema é o sumário enterro de Bob, para que as evidências sobre a existência do grupo, que começa a sair de sua condição subterrânea, sejam apagadas. O personagem de Norton, no entanto, vê tal consideração como um acinte, uma negação da individualidade e da existência de seu amigo. Sua morte é uma dor para ele. A ausência do respeito devido dos colegas para com ele o incomoda profundamente. Tyler reclama para o amigo a existência de um nome; a reação dos demais, ainda que espirituosa e exemplar do funcionamento de um ritual comunitário, indica a presença de uma certa racionalidade que contradiz a valorização não-liberal da individualidade reivindicada pelo narrador: a partir da consideração, por parte de um dos elementos, de que “na morte, um membro do Clube da Luta possui um nome”, todos enunciam conjuntamente, e sem parar: “seu nome era Robert Paulsen!”. Em outro momento, o derradeiro do filme, Tyler tenta salvar Marla dele mesmo, já que seu alterego – que afirma a sua condição como tal perante o narrador – considera Marla como um problema para o sucesso do movimento mais ousado da missão, isto é, a destruição do sistema financeiro mundial. Aliás, é a partir do momento em que reencontra consigo mesmo que Tyler consegue, pela primeira vez, admitir que ama Marla, e que esse sentimento não é vergonhoso e não deve ser escondido por ele. Sua falha em protegê-la faz com que, então ela seja trazida à força e de maneira um tanto violenta pelos integrantes do Clube apenas alguns minutos antes da destruição dos prédios. Nesse contexto, Tyler e seu alterego discutem de maneira ríspida sobre o que é certo e o que é errado, sobre a necessidade de se sentir responsável pelas coisas que se faz – lembrando-se que o narrador considerava um excesso de responsabilidade o fato mesmo de se estar sentado ao lado da saída de emergência de um avião, conforme confessara ao alterego no momento em que se apresentavam. O filme adquire, então, em nossa avaliação, um tom romântico, na medida em que é o risco de morte de Marla que funciona como o último passo na conscientização de Tyler, que retoma o controle sobre si por meio de um tiro em sua própria boca29. Marla é trazida para seu encontro, e é após a tomada final de consciência de Tyler que, finalmente, aquela pode ser, enfim, admitida como sua alteridade, ato simbolizado no entrelaçar das mãos entre os personagens. Concomitantemente, pode-se dizer que a admissão de si mesmo como responsável e a aceitação do que havia realizado (ainda q sob a mente de seu alterego), aparece numa situação temporal próxima àquela: seu receio de que o plano revolucionário desenvolvido (e que desconhecia completamente, o que também lhe causava uma situação de estranhamento que o impeliu a agir mais significativamente pela primeira vez) se configurasse como um assassínio em massa é desfeito por seu alterego e por suas próprias experiências de descoberta do que ocorria, na medida em que não só não haveria vítimas no desenrolar do ato como os funcionários dessas empresas (e boa parte do próprio corpo policial da cidade) apoiava e estava por trás do planejamento e da execução dessas ações.

Temos, então, que do ponto de vista econômico, o projeto revolucionário, tal qual enunciado pelo alterego de Tyler, é o da restauração do equilíbrio entre as pessoas. Nesse sentido, parece sem sentido a possibilidade de formação de uma identidade autônoma e expressiva do eu que não passe pelas questões de ordem econômica. No entanto, a democracia aí pensada não está posta no sentido do acesso da coletividade humana aos móveis e bens de fundo étnico que só podem ser comprados por altos executivos. O personagem de Brad Pitt deixa clara a sua aversão ao consumismo, ao fato de que não compramos coisas de que não precisamos, como vivemos para a sua aquisição, fazendo com que nossa identidade se torne metonímica, isto é, reduzida àquilo que é o nosso emprego, o nosso carro ou a nossa louça. A utopia do alterego é a possibilidade, suspensa numa sociedade narcisista, de um projeto de vida (já que aqueles que eventualmente aí se formam parecem voltados para a pura imediaticidade). Mais especificamente, a convivência livre e desimpedida com os animais, a predominância do natural sobre o asfalto e o concreto, o comunitarismo, ao rompimento da temporalidade da sociedade urbana. O fabricante de sabonetes (profissão aparentemente contraditória com o rompimento do narcisismo) enuncia a necessidade de reformulação dos conceitos de amizade, de vida, de responsabilidade e comprometimento e de concepção de si mesmo. Essa discussão aparece no momento em que o narrador, “seqüestrado” para um passeio suicida num automóvel, reivindica maior conhecimento sobre o que ocorre no Clube da Luta. Sua busca por controle está, então, dentro dos jogos de poder foucaultianos. É pura resistência, inviável no seio do capitalismo; é resposta conservadora, pois não implica na transformação generalizada de suas concepções de mundo: trata o Clube da Luta, então, quase que como um hobby. O controle sobre a vida só é possível, para o alterego de Tyler, quando deixamos a vida fluir (não no sentido hedonista, mas naquela proposto no filme, na medida em que naquele só nos preocupamos com a integridade, e neste, com o risco), quando permitimos que ela se potencialize em experiências diversas, que deixam cicatrizes em nosso círculo experiencial, e não emoções efêmeras, descartáveis. A idéia de igualdade defendida pelo Clube da Luta se coloca no patamar mesmo da biologia, do organicismo. Não há nada de especial em cada um de nós, ao contrário do que o ethos consumista quer enunciar. Somos todos compostos da mesma matéria orgânica que um dia se decomporá. Somos, ao mesmo tempo, a matéria dinâmica, cheia de vida, autonomia e poder30. É nesse sentido, então, que a organização do Projeto Destruição recusa completamente qualquer apropriação estética que possa ser associada ao consumismo. A vestimenta básica é o uniforme, o corte de cabelo é militar. Resta a pergunta, no entanto, se não seria possível pensar, após esse momento transicional, se não estaria posta alguma espécie de autonomia nesse sentido da produção estética, ou se inevitalmente (ao contrário do próprio sentido da auto-destruição presente na luta) este é um domínio totalmente cooptável pela lógica reificadora do capital.

Com relação à questão ética desenvolvida logo acima, nos parece, em primeiro lugar, que a noção de ética desenvolvida por Habermas é insuficiente, ou mesmo pouco viável, pelo menos do ponto de vista materialista. O estudo do filósofo alemão sobre o tema da consciência moral, embora corretamente criticado por uma certo direcionamento teleológico da ação humana e por uma certa associação pouco crítica e razoavelmente etnocêntrica entre os níveis observados e os comportamentos éticos observados em cada civilização (como se fosse possível realizar tal generalização), é extremamente válido por se constituir como um esforço articulado em construir um ética do discurso superior, amparada em relevantes estudos psicopedagógicos. O desígnio habermasiano de se obter felicidade e dignidade por meio da constituição de uma identidade do eu que coloque limites a si mesma31 parece pouco possível num contexto de desigualdade social e econômica. Parece, ao mesmo tempo, poder se ligar – ou ser cooptado, ainda que eivado de boas intenções – à lógica narcísica, caso realmente se paute por uma certa restrição da ação em nome de um autocontrole que pode ser um fim em si mesmo.

A nós nos parece, por outro lado, que o caminho pretendido pelos membros do Clube da Luta se aproxime de uma luta por dignidade similar àquela enxergada por John Holloway no movimento zapatista. A comparação pode ser realizada, em primeiro lugar, pelo fato de que tanto o movimento político mexicano como grupo revolucionário idealizado no filme se prestam a uma compreensão de si não-identificadora, isto é, que não atribua para si conotações de valor e de sentido que reduzam a complexidade de suas identidades e comprometam a própria dinamicidade de sua existência e a potência de suas ações. Isso ocorreria, para Holloway – em seguimento a Foucault e a Adorno –, na medida em que a política da identidade necessariamente constitui uma lógica de redução da condição humana, de sectarização e de afirmação de verdades parciais como possuindo conteúdos universais. Identidade está associada ao estado (tanto como condição quanto como corpo político burocrático)32; é controle e retirada de potência da vida. No final das contas, o Clube da Luta não possui a preocupação de constituição de vanguarda; os discursos do alterego de Tyler não se reduzem a conteúdos de gênero, raça ou mesmo classe. Está colocado para acima deles, na medida em que se refere aos excluídos. Mas estes não estão somente postos no sentido econômico; a exclusão está no sentido do controle da vida, da prisão perante o hedonismo e a outras formas de controle não-formais. A mesma preocupação com a questão da formação de coletividades emancipadoras que rasguem em sua interioridade as cisões identitárias clássicas da modernidade, rejeitem a conquista ou o uso do poder e busquem realizar, pela multiplicidade de experiências, uma conciliação material entre o particular e o universal, entre o indivíduo e a sociedade está também em Holloway (2003)33.

A nós nos parece, enfim, que a conciliação realizada pelo filme entre indivíduo e sociedade realiza o ideal apontado por Elias34, na medida em que traz de volta para o campo individual a idéia essencial da responsabilidade, atributo mesmo que efetua a conexão entre a esfera individual e a social. O sociólogo entende a produtividade dessa interação na medida em que ambos não são entendidos como antíteses: eles se harmonizam, coadunando os interesses pessoais dos indivíduos, de um lado, com as exigências de um um trabalho cooperativo, de outro. Apesar do razoável distanciamento teórico e político entre Elias e o marxismo, é possível observar aqui a emanação moral de um ideal encontrado no jovem Marx da Ideologia Alemã, isto é, o desejo do livre desenvolvimento de cada um como a condição para o livre desenvolvimento de todos. Para Elias, essas duas coisas só são possíveis juntas; jamais pode estar em questão o preterir de um pelo outro. No entanto, essa tensão, que expressa a conhecida e desequilibrada balança entre o nós e o eu, está longe de ser resolvida. Na medida em que o senso comunitário desenvolvido no seio da organização revolucionária transformou radicalmente o caráter e o conteúdo das relações entre seus membros, a inserção destes no mundo e a percepção de si mesmos, tornou-se possível transcender a pulverização do privado e do público que se desenvolveu na modernidade, tal qual analisada por Hannah Arendt. Mas isso não significou um novo isolamento reificado destas duas dimensões, mas sim – pelo poder, neste caso, do compartilhamento de experiências e da possibilidade do fazer-junto desinteressado (isto é, não voltado para fins imediatistas) – a potencialização aditiva das mesmas. A partir do momento em que é possível trabalhá-las em conjunto, não só se equilibra a balança nós-eu, mas se potencializa a identidade-nós e a identidade-eu. A vida transformada de apatia em potência – feito somente possível em sua plenitude em âmbito plenamente social – permite o aproveitamento das experiências sem o desejo de fugacidade (conforme descrito por Lipovetsky quando este se refere a um dos comportamentos primordiais da sociedade narcísica35, ainda que este novo processo de individualização seja percebido pelo autor de forma apologética, já que esse tipo de regulação das relações humanas impede o antagonismo social), transforma cada relação numa possibilidade de aprendizado, ao mesmo tempo em que este, não mais visto como bem escasso, deixa de ser adquirido e percebido de maneira unicamente auto-interessada.

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1Um compêndio das principais análises deste filme pode ser encontrado em http://www.rottentomatoes.com/m/fight_club/ .

4Esse procedimento, bastante comum na indústria automotiva contemporânea, consiste na convocação dos usuários de um modelo específico de um veículo para a troca de uma determinada peça do mesmo. Esse intercâmbio, que por lei é realizado gratuitamente, geralmente ocorre quando se verifica que houve um erro de fabricação num lote consideravelmente grande de peças de mesmo tipo (p.ex. suspensões, diferenciais ou air-bags); esse erro costuma ser descoberto após uma sequência de acidentes fatais em que avarias na peça são o denominador comum.

5Tendo em vista que agora sabemos que o narrador se denomina, na realidade, Tyler Durden, admitiremos, como facilitação terminológica, a referência ao narrador como Tyler, e ao personagem de Brad Pitt como seu alterego.

6BECK, 1992, pp. 130-131.

7Idem, pp. 129.

8BECK, pp. 132-134.

9FOUCAULT, 1977, p. 119.

10SENNETT, 1999, p. 399.

11SENNETT, 1998, p. 395.

12Idem, p. 396.

13Idem, p. 401.

14Idem, p. 405-407

15Idem, p. 408.

16LASCH, 1979, p. 34.

17Idem, p. 52.

18Idem, p. 92.

19Idem. pp. 210-215.

20Idem, p. 104.

21Idem, pp. 50-55.

22SENNETT, 1998, p. 318.

23ARENDT, 1983, pp. 78-83.

24Idem, pp. 260-269.

25BECK, p. 128-129.

26LASCH, p. 43; 251.

27A questão da relação entre a identidade e o gênero, que possui grande relevância para a compreensão da proposta político-social do filme não pode ser incluída nesta versão do trabalho em razão de restrições espaciais e temporais em sua execução.

28 cf. FOUCAULT, 1995.

29A última frase antes desse feito possui um evidente sentido metalingüístico perante o próprio filme: o personagem anuncia para seu alterego, logo antes do tiro, que “seus olhos estão abertos”. Era exatamente esse o clamor do personagem de Brad Pitt no momento em que fazia sua outra metade ter sua primeira experiência radical de dor como potencialização da vida, a cena do beijo no pulso. Enquanto o narrador buscava se refugiar em sua “fortaleza interna” em busca de sua força vital, seu alterego denunciava que aquele era o melhor momento de sua vida e que aquilo estava sendo perdido, sendo só alcançado caso se ficasse com os olhos abertos. Essa atitude de Tyler, no crepúsculo do filme, revela então que só se encontrava preparado para fazê-lo (isto é, admitir o risco como condição essencial do controle da própria vida) naquele momento, e só aí, então, pôde se libertar da condição de expectador.

30A expressão utilizada pelo alterego que simboliza essa condição vivente é “all singing, all dancing crap”, que se refere, no contexto norte-americano, ao primeiro musical lançado em Hollywood, Broadway Melody (1929), que empregava em seu cartaz de lançamento esta expressão, que se popularizou significativamente no contexto norte-americano e adquiriu outros sentidos desde então. Para uma breve descrição do contexto mencionado, cf. http://www.worldwidewords.org/qa/qa-all4.htm .

31HABERMAS, 1983, p. 72.

32HOLLOWAY, 1998, pp. 166-174.

33Cf. o capítulo “O Sujeito Crítico Revolucionário”, pp. 202-227.

34ELIAS, 1994, p. 17.

35LIPOVETSKY, 2005, pp. 70-74.



4 Responses to “Hedonismo, Controle e Emancipação: A Crítica da Individualidade Contemporânea e a Alternativa Emancipatória em ‘Clube da Luta’”

  1. 1 Leo

    Sérgio, parabéns pelo ótimo trabalho, vc conseguiu captar detalhes fundamentais do filme com grande profundidade teórica e, com isso, fazer uma excelente interpretação das angústias que nos cercam contemporaneamente.
    Acho que precisaria assistir ao filme (e ler o livro) mais umas dez vezes para captar tudo que realmente está por trás de sua mensagem. Mas, de forma genérica, creio que a chave de uma interpretação fenomenológica no sentido de exploração das experiências vividas por uma consciência revlucionária parece bastante adequada. Acho que foi um pouco isso que vc quis mostrar e o fez muito bem. A cena final, em que o “sujeito” vive a experiência máxima da morte (ao dar um tiro na cabeça) e em seguida se reconcilia consigo mesmo (numa auto-conscientização) mostra o ápice deste processo.
    Seu trabalho me fez pensar milhões de coisas, mas acho que não sou capaz de transcrevê-las aqui e agora, fica um convite para discussões futuras…
    Abraço
    Leo

  2. 2 Gabriel

    Muito bom o trabalho. Achei seu texto por acaso pesquisando no Google.
    Não sabia que você também era um admirador desse filme genial. Me deu vontadade de vê-lo novamente e descobrir novos aspectos surpreendentes que fazem de Clube da Luta um novo filme a cada nova sessão!

    Grande abraço,
    Gabriel Nascimbeni

  3. 4 Kelly

    Estou surpresa com a leitura de uma análise profunda sobre o filme. Clube da Luta esta entre os meus prediletos, mas só agora ficaram mais acentuadas pra mim as crises vividas por Tyler, personagem que representa toda a humanidade perdida em sua existência, num mundo regido pelo capitalismo e pelo consumismo individual. O texto me deu um panorâma de suas angústias por outros ângulos. Excelente trabalho.


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